24.11.10

"Pobreza intelectual é mais grave do que a material"

in Jornal de Notícias

Há cada vez mais pobres em Portugal. Este ano, o Banco Alimentar ajuda mais 24 mil pessoas. Também as instituições da Igreja, não tendo números certos, recebem diariamente mais pedidos de apoio.

José Leite Pereira - Muito lentamente, a sociedade vai ganhando consciência daquilo que é a pobreza e do ponto em que estamos. Professor, como vê este problema, o que vamos ter de mudar?

Alexandre Quintanilha - Eu gostava de contextualizar... Porque, se estamos a enfrentar este problema em Portugal, não nos esqueçamos de que há um sexto da população mundial que passa fome. Há também mil milhões que comem demais no Mundo ocidental e há cerca de mil e quinhentos milhões que comem mal, alimentam-se de açúcar e gordura e têm problemas graves de saúde. É um problema ainda relativamente pequeno, mas há o risco de aumentar. E isso tem a ver com escolhas económicas que são feitas pelo Mundo inteiro, e tem a ver com a globalização. E a segunda questão é a de que a fome vem da pobreza material. Mas há outros tipos de pobreza mais graves, que são as pobrezas intelectuais. O bispo do Porto, provavelmente referir-se--ia a isto como pobreza espiritual. Se estivermos treinados intelectualmente, se tivermos capacidades intelectuais, podemos ir à procura dos sítios onde exista trabalho. Em Portugal, a fome já foi um problema do passado, e o facto de estar a aparecer novamente é preocupante. Mas é muito gratificante saber que há movimentos de solidariedade e caridade. Esta é a função principal de qualquer religião: dar uma mensagem de amor, caridade e solidariedade.

JLP - Atrever-me-ia a dizer que não é só o papel da Igreja, é o papel de cada um de nós, cidadãos. A Igreja tem consciência disso há muito tempo e dá testemunho do crescimento alarmante da fome.

D. Manuel Clemente - Claro, e não podia ser de outro modo, uma vez que é uma rede muito espalhada e pormenorizada no território e na população. Independentemente da sua pertença maior ou menor, religiosamente falando, as pessoas acedem onde encontram uma resposta. Mas agradeço ao professor Quintanilha por ter aberto a questão e o problema nesta dimensão que é planetária. Mesmo os países que se poderia pensar estarem longe da crise são afectados necessariamente. Até porque as populações dos países mais pobres as procuram e também não poderiam viver sem essas populações imigradas, para a sua subsistência. Vemos isso na própria Alemanha, França, Inglaterra, EUA, em todo o Mundo mais desenvolvido. Também concordo com o professor quando diz que esta crise não é apenas material, da subsistência, como diziam os antigos, 'primo vivere deinde filosofare', ou seja, 'primeiro vive-se e depois filosofa-se'. O que espero e começo já a verificar é que esta crise se transforme numa crise de crescimento, ou mais até de desenvolvimento, no sentido global, espiritual, intelectual e em tudo aquilo que é a pessoa humana e a sua capacidade infinita de resolver os próprios problemas. Por isso, todas as medidas organizadas e atitudes espontâneas, que vão no sentido da solidariedade, da entreajuda, são boas na medida em que nos alertam para uma outra realidade que é o desenvolvimento e não a simples satisfação material. É muito interessante aquela frase escrita por Paulo VI em 1968, e que o Papa Bento XVI recuperou nesta última Encíclica, de que o que se procura é o desenvolvimento de todos os homens e do homem todo, quer dizer, da Humanidade em toda a sua potencialidade. E tem esses patamares, que acabam por ser uma coisa só: materiais, intelectuais, espirituais, acerca do sentido e da relação.

JLP - Mas chegamos aqui porque fomos quase que convidados...

AQ - Acho que há um ênfase muito grande no consumismo. Os últimos números mostram que, na área da propaganda consumista, a China está a crescer 10% ao ano. O que se gasta em marketing, em publicidade na China está a duplicar de seis em seis anos. Há um enorme ênfase naquilo que é material: felicidade vem de possuir coisas, podermos fazer coisas maiores. E o que estamos a aprender é que o crescimento tem de ser sustentável. Temos de aprender a viver com os recursos que temos e, em parte, Portugal tem gasto acima dos seus recursos. Por um lado, aprender o que é a sustentabilidade e como é desenvolvida, em todas as áreas. Por exemplo, a Saúde está cada vez mais cara, gasta-se mais dinheiro do PIB. É verdade, mas esse dinheiro é gasto quase exclusivamente com os avanços na Saúde, quando o maior impacto da educação para a Saúde tem a ver com hábitos pessoais, como comer melhor. Os quatro grandes dramas no Mundo inteiro dos efeitos sobre produção, trabalho do homem, são a nutrição das mães e o seu efeito sobre os recém-nascidos, a nutrição dos adolescentes e dos adultos (prevê-se que Portugal tenha 12% de diabéticos daqui a pouco tempo), o sexo desprotegido e o tabagismo.

JLP - E nada disto se cura com pastilhas...

AQ - Preocupamo-nos muito com a cura e pouco com a prevenção. E estas quatro áreas têm a ver com a educação da população, com o conhecimento das consequências.

MC - Tem a ver com uma educação mais qualitativa e menos quantitativa. Envolve todos, não só os que estão no sistema escolar, com uma escolaridade existencial. Ainda há tempos, falava com o director de uma faculdade e ele dizia-se preocupado porque os factores de selecção concretamente, não apenas de valores mas de décimas para acesso aos cursos, era feita apenas quantitativamente, ou seja, eram os que tinham estudado mais, decorado mais, debitado mais matéria que entravam. E dizia que, para aquela profissão - na área da Saúde - o factor da competência é importantíssimo, mas o factor humano também, senão mais importante, porque se trata de pessoas.

JLP - Volto à pergunta, nós fomos conduzidos para aqui, isto é, conduziram-nos para este consumismo.

AQ - É verdade que tudo nos dirige nessa direcção. Mas nem toda a gente tem de ser ovelha e seguir o que dizem. Um dos grandes ganhos dos últimos cinco séculos é as pessoas terem autonomia e responsabilidade, decidirem como é que querem viver. E há muitas maneiras de nos sentirmos preenchidos. Como professor, obviamente que das coisas que mais me preenchem é ver alunos que são melhores do que eu. Quando era mais jovem, se calhar tinha outras necessidades individuais. A minha mãe dizia-me que os grandes livros eram livros que lia de 10 em 10 anos e a mensagem era diferente. Isso é verdade, um grande livro é aquele em que se fica fascinado por personagens diferentes. Imagino que a Bíblia deve ter uma leitura semelhante.

MC - Com certeza, a leitura eterna como já lhe chamaram.

AQ - Aquilo que se recebe ao longo da vida também varia. Não estou de acordo com a ideia de que nos conduziram. Tentaram conduzir e foram, infelizmente, bem sucedidos em alguns aspectos.

MC - Tem a ver com uma certa infantilidade, não é? Porque nós começamos por ser muito quantitativos quando nascemos, queremos imediatamente aquilo que também imediatamente nos satisfaz. A pouco e pouco é que vamos ganhando liberdade interior para observar, decidir, escolher. E é absolutamente necessário que seja acompanhado e estimulado por uma sociedade que valorize essas atitudes mais livres, porque mais responsáveis. Falou de leitura, e muito bem, porque hoje em dia editam-se imensos livros. Mas quem é que os pode ler com o ritmo de vida actual?

AQ - A questão das escolhas dos alunos para as universidades também é das coisas que mais me preocupa, porque são feitas exclusivamente do ponto de vista quantitativo. E há muitas áreas - não é só na Saúde - em que a capacidade da pessoa se relacionar com os outros, de saber ouvir os outros é muito importante. Não se nasce a saber, é claro que o ambiente em casa ajuda, mas o fascínio por aquilo que não se sabe, pelo que é diferente, aprende-se. Costumo dizer que, às vezes, aprende-se mais nas alturas difíceis.

JLP - Ouço-os falar e fico com a sensação de que é muito fácil mudarmos o nosso dia-a-dia...

MC - Comecemos por nós próprios. Mas por isso é que estamos aqui a conversar e a fazê-lo com empenho, porque repercute a nossa preocupação diária: criar espaços em que as pessoas possam crescer como pessoas. O professor estava a falar do outro. Absoluta consciência de que o espaço que dou ao outro é o espaço que dou a mim próprio, porque conheço-me por ricochete. E na medida em que é responsável pelo outro, cresce por ele próprio. Somos pessoas, seres em relação.

JLP - Penso que é uma boa forma de concluir este tema, e introduzia outro, a propósito do lançamento do livro/entrevista do Papa, sobre o uso do preservativo. Bento XVI não disse nada de novo, mas o facto de o ter dito marca uma nova etapa na forma como a Igreja fala aos católicos no uso do preservativo.

MC - A atitude na Igreja tende ao conjunto da pessoa. E não é só a Igreja Católica que diz que, para responder a problemas como estes, que são graves no que diz respeito à propagação de doenças sexualmente transmissíveis, se tem que ver a pessoa em si e que não se responde apenas com artifício técnico, mas também em termos de responsabilidade social. Mas isso não é apenas a Igreja que diz, mesmo na OMS está previsto. Agora, esta conversa do Papa é isso mesmo, uma conversa com um jornalista. E é importante também perceber que tipo de posição é. Não é uma Encíclica, um documento oficial. Uma conversa com um jornalista pretende responder a questões concretas. E foi o que aconteceu. Nunca ouvi nenhum Papa dizer que era preferível uma pessoa, para não usar preservativo, transmitir uma doença sexual. E no atendimento particular dos casos, seja com padres ou leigos destes sectores da pastoral, tenham atenção a esta questão, sem esquecer o valor.

JLP - Está concretamente a dizer que os missionários que trabalham em países em que a propagação das doenças é rápida também fazem essa interpretação.

MC - Em situações concretas, com certeza que uma atitude de bom senso não pode ser diferente desta que o Papa manifestou. Mas isso é o puro bom senso.

AQ - Sobre essa questão, quase que acho que é uma não-notícia. Porque na maioria dos católicos que conheço - e conheço muitos - o que prevalece é o tal bom senso, e sempre usaram preservativo e não só para se proteger das doenças. Uma coisa é aquilo que lhes preenche a sua necessidade espiritual em relação a qualquer igreja, a outra coisa é como se vive o dia-a-dia e como queremos construir a nossa vida individual na sociedade em que estamos. Portanto, ainda bem que o Papa disse isso, porque isso tem um efeito muito significativo nos países onde a doença está a crescer de uma forma dramática. Acho que se calhar devia ter sido dito há mais tempo, mas isso é a minha posição pessoal. Agora, no Mundo em que vivemos não é uma notícia, porque a grande maioria das pessoas - que são intelectualmente ricas - sabem decidir como é que querem viver e organizar a sua vida individual.