29.11.10

"Se voltasse para casa ia a caminho do cemitério"

in Jornal de Notícias

Há uma coisa que Antónia nunca disse a ninguém. Já muitos sabem dos insultos, dos pontapés, dos murros, da vida de humilhação e dor. Sabem que, em 20 anos de casamento, apanhou centenas de vezes do marido. Nem sabe quantas. Outros conhecem a sua revolta interior quando fala das filhas e da vida de inferno que tiveram. Mas há uma coisa que Antónia nunca disse a ninguém.

Não sabe porquê, talvez por medo ou por vergonha, talvez por achar que ninguém repararia. Antónia nunca contou que tem "um olho mau, com deficiência" por causa da pancada. Uma marca que carrega há anos e que, sem explicação, decidiu partilhar. É uma memória, como tantas outras, que o marido lhe espetou na alma. Doeu forte, mas deu-lhe força para, há cerca de um mês, tomar uma decisão: fugir e começar de novo.

Foi a segunda vez que Antónia abandonou o lar com as três filhas. Na primeira fracassou. Voltou a casa e resistiu apenas um mês. "Só passei uma noite direita". "Era de mais, insultava--me, chamava-me de tudo. Dizia-me que tinha trocado uma puta por outra. Quando respondia dava-me pancada sem dó, com as mãos, com paus, com o cabo da vassoura, com o que houvesse por perto", lembra.


foto Adelino Meireles/Global Imagens




"Ainda gosto dele"

As filhas tentavam socorrê-la e levavam também. "Tinha de pô-las na rua para as proteger. Levaram tanto, tanto...", chora, apertando um lenço de papel encharcado entre as mãos.

Antónia, tal como Catarina e Maria (todos nomes fictícios) vieram de longe refugiar-se numa casa-abrigo. Uma habitação para vítimas de violência doméstica da Asssociação de Defesa dos Interesses e da Igualdade das Mulheres (ADDIM), cuja localização tem de ficar sob anonimato porque para ali só vão pessoas em risco de vida.

Sentada na cama, encolhida e com o olhos pregados na biqueira do sapato, Antónia assoa-se e limpa as lágrimas quase compulsivamente. Há uma pergunta que a atormenta, há um sentimento que a corrói por dentro e que não consegue explicar. Balança o corpo para trás e para a frente e dispara: "Acredita que eu ainda gosto dele? Só posso estar muito doente, mas a verdade é que ainda gosto dele e às vezes tento ligar-lhe", confessa, baixinho, como uma criança envergonhada com uma asneira.

Antónia sabe que, desta vez, não pode fraquejar. Se voltar a casa, pode morrer. "Cheguei a temer pela minha vida. Uma vez puxou de um martelo e outra de uma faca. E sei que ele tem uma arma, nunca a vi, mas sei que já a usou num sarilho com vizinhos", conta.


foto Adelino Meireles/Global Imagens




Na noite em que fugiu de casa, Antónia entrou em desespero. "Só pensava o que iria ser a minha vida e a das minhas filhas sem casa, sem dinheiro, sem nada". Foi reencaminhada para a casa-abrigo da ADDIM, onde encontrou o que precisava. Um tecto, apoio psicológico e o conforto de um lar sem violência. "Não é por falta de ajuda que as pessoas têm de ficar nesta vida. Esta casa é melhor que muitas famílias, é muito melhor do que a minha".

Abandonada numa pensão

Catarina sente o mesmo, até porque não teve a sorte de Antónia. Não havia vagas em casas-abrigo quando decidiu fugir do marido e esteve quatro meses "refugiada" numa pensão. Sozinha, sem apoio, dia e noite a perguntar-se se teria tomado a decisão certa.

"Sentia-me um farrapo, a vida não tinha sentido, queria morrer, queria a minha filha", conta, esfregando as mãos nos jeans, nervosa com as memórias que vai retirando de um baú que preferia não ter.

Esteve casada 18 anos com um polícia. Em casa não havia direitos. Só pancadaria. "Começou a bater-me na primeira semana de casamento. Sempre fui o saco de boxe dele", compara. Acabou "muitas vezes" no hospital. Empurrada contra as paredes, agredida a soco e a pontapé, aparecia esmurrada e com escoriações no corpo. "Os vizinhos tinham medo, nunca ninguém me socorreu. E ouviam, de certeza, porque eu gritava muito", recorda.

Mas o marido era polícia e ninguém queria problemas com a Polícia. "Ele tem muitos amigos, tem influência, se não como é que o divórcio haveria de estar tão parado?", questiona, sem esperar resposta.

"Queria matar-me"

Já passaram oito meses desde que Catarina saiu de casa, mas continua a acordar de noite, com pesadelos. Aquela última manhã, no quarto, não lhe sai da cabeça. "Deu-me murros, pontapés, fez-me um corte na cara com qualquer coisa, pôs-me as mãos na garganta e esganou-me com toda a força. Fiquei sem respirar, queria matar-me", assegura, num ritmo pausado, com as emoções controladas por calmantes.

Pediu ajuda pela linha 144 (Emergência Social). Foi retirada de casa com uma depressão profunda e uma dor inexplicável por ter de deixar a filha, de 10 anos. "Às vezes, ela metia-se entre nós e apanhava também", recorda. O tribunal decidiu partilhar a guarda da menor: "Custou-me muito deixá-la, foi injusto, não era eu que tinha de abdicar dela", lamenta.

Aliás, foi sempre pela filha que voltou para casa. "Já tinha saído antes, mas não aguentei". "Ele pedia perdão, dizia que não voltava a bater-me e eu acreditava. Sou da aldeia, com a minha mãe também era assim", explica, encolhendo os ombros.

Às vezes, Catarina ainda pensa voltar a casa. Tem saudades do lar, das coisas que juntou toda a vida. Tem saudades da filha, tem medo que o marido a magoe, que a obrigue a dizer onde está a mãe. Rapidamente, volta a si: "Se voltasse a casa, ia a caminho do cemitério".

Maria esteve casada mais de 30 anos. O marido sempre bebeu e sempre lhe bateu. Arrependia-se quando estava sóbrio, mas quando voltava a beber, voltavam as agressões. No início, acontecia de longe a longe, mas tudo piorou quando o filho se matou com um tiro. "Não lidou bem com aquilo, dizia que a culpa era minha e batia-me", recorda. Maria tentou seguir os passos do filho, mas os comprimidos que ingeriu não cumpriram o seu propósito.

Nunca desabafou com ninguém, nunca lhe perguntaram por que tinha a cara negra. Apresentou várias queixas na GNR, mas o processo acabou arquivado por falta de provas e testemunhas. Tudo acontecia entre quatro paredes, quando os filhos estavam fora.

Há um ano, pediu ajuda a uma associação e foi reencaminhada para uma casa-abrigo a mais de 300 quilómetros. Saiu com a roupa do corpo, largou tudo o que gostava, os filhos, a casa e o emprego. Hoje, vive num quarto e recebe apoio psicológico. A vida recomeça, lentamente. "Sinto-me bem, libertei-me".