28.3.11

Entrevista com Elza Chambel

Por Célia Rosa, in Jornal de Notícias

O voluntariado é um serviço que nasce da vontade de nos oferecermos aos outros e à sociedade. Cada um dá o que pode e o que sabe. De forma livre e desinteressada. Resultado? Ganhamos todos. Elza Chambel, presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado, explica como e porquê.

_De que massa se faz um voluntário?

De gente boa. Pessoas que gostem dos outros e de si próprias e que sejam responsáveis. Embora o voluntariado seja um serviço gratuito e desinteressado, a verdade é que tem regras.

_Quem pode ser voluntário?

Qualquer pessoa, independentemente da idade ou da escolaridade, desde que esteja no pleno uso das suas faculdades cognitivas e psíquicas. O slogan do Ano Europeu do Voluntariado (AEV) - «Ser voluntário! Faz a diferença» - quer dizer que qualquer pessoa de bem pode ser voluntária e colocar as suas aptidões e o melhor de si ao serviço dos outros, das famílias, da sociedade. Tem de escolher uma área, uma causa. Podem ser crianças, idosos, pessoas com deficiência, animais, cultura, desporto, ambiente, etc.

_Para fazer voluntariado basta querer ajudar o próximo e ter disponibilidade?

Querer ajudar os outros e querer fazer o bem é a primeira condição, mas não a única. As pessoas têm de conseguir potenciar as suas qualidades humanas, os seus conhecimentos e aptidões de forma a que possam ser úteis. O facto de o trabalho voluntário não ser pago não quer dizer que seja feito de qualquer maneira. O bem tem de ser bem feito. O voluntário pode ser muito competente a desenvolver umas actividades e ter muitas dificuldades noutras. Há pessoas que trabalham muito bem com idosos mas que não conseguem lidar com mulheres vítimas de violência doméstica ou com cidadãos portadores de deficiência. Outras têm muita facilidade para trabalhar com jovens, na área da música ou no desporto amador, uma actividade que em Portugal envolve centenas de colectividades e milhares de pessoas, quase todas voluntárias. Aliás, é graças ao desporto que registamos um elevado número de homens no voluntariado no grupo etário dos 25 aos 45 anos. Já a partir dos 55 anos, encontramos mais mulheres, estão ligadas à acção social. Os mais jovens envolvem-se sobretudo nas causas do ambiente.

_Existe uma idade mínima para se ser voluntário?

De acordo com a lei portuguesa, é preciso ter 18 anos, no mínimo. Mediante autorização escrita dos pais, os jovens podem tornar-se voluntários a partir dos 16 anos, mas o seguro social voluntário abrange apenas pessoas com 18 ou mais anos. No âmbito do Serviço Voluntário Europeu, que promove um voluntariado enquadrado em organizações fora do país de origem, os jovens podem ser voluntários a partir dos 16 anos.

Direitos e deveres

_Para uma pessoa ser voluntária tem de fazer alguma formação?

Quando o voluntariado é assumido e enquadrado por uma entidade promotora, faz-se formação. O objectivo é a ajuda, é fazer crescer o bem na sociedade, é auxiliar as pessoas a viverem melhor. Além das normas que regulam o funcionamento da instituição promotora, o voluntário deve conhecer muito bem os seus deveres e os princípios éticos das actividades que vai realizar. O respeito pela vida privada das pessoas, não fazer juízos de valor, não projectar as suas opiniões e as suas crenças nas relações que estabelece, são algumas das regras a cumprir. Deve ter um cartão de identificação que é emitido pelo Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado.

_Uma pessoa pode achar-se com apetência para trabalhar com crianças ou idosos e depois, no terreno ou na formação, perceber que não é bem assim?

Sim. Dou-lhe um exemplo que me foi contado por uma coordenadora de voluntariado de uma instituição de Évora. Tratava-se de uma pessoa que queria fazer voluntariado com deficientes. Mas, na sua mente, deficientes eram crianças. Sucede que quando foi para a instituição o primeiro deficiente que lhe tocou era um jovem adulto, 28 anos, incontinente, que precisava de apoio em todas as funções. Aquela senhora não aguentou o primeiro dia...

_E depois?

Foi integrada num grupo de voluntárias, ex-professoras do ensino básico e secundário, que liam histórias, revistas, entrevistas, a idosos em centros de dia, e que faziam a animação de uma biblioteca. A mesma pessoa que não se sentiu capaz de trabalhar com adultos deficientes fez um trabalho notável numa comunidade de leitura. Como vê, qualquer pessoa pode ser voluntária.

_Acredita mesmo nisso?

Acredito que qualquer pessoa que esteja no uso das suas faculdades psíquicas pode fazer trabalho voluntário. Volto a falar das capacidades psíquicas porque ainda existem médicos que dizem aos pacientes com doença do foro psíquico: «Olhe, vá fazer voluntariado que isso passa-lhe.»

_Está a dizer que médicos incentivam pessoas com depressões ou outras doenças psíquicas a tratar-se através do voluntariado?

Ando a tentar educar os ilustres clínicos que o voluntariado não é panaceia. O objectivo do voluntariado é ajudar os outros, embora quem faça o bem também se sinta muito gratificado.

Um serviço complementar

_Como é que se avalia a prestação do trabalho voluntário?

Essa é uma das dificuldades que temos mas, em regra, as organizações têm um coordenador do voluntariado a quem cabe monitorizar o trabalho desenvolvido. O voluntariado enquadrado em organizações exige a assinatura de um contrato que formaliza o compromisso com a organização e estabelece as regras, os direitos e os deveres, a natureza do trabalho, o tempo a despender, etc.

_E quando uma das partes não cumpre? O que deve fazer um voluntário se lhe pedirem para desempenhar funções que não são as suas?

Também acontece. Uma educadora que coordena um projecto de voluntariado no serviço de pediatria de um hospital de Lisboa contou-me que um dia encontrou uma voluntária a fazer as camas... Pediram-lhe e ela acedeu. Mas devia ter-se recusado a executar tal tarefa e informado a coordenadora do que se tinha passado. Nas organizações onde não existe um coordenador, a pessoa deve dirigir-se à direcção da instituição e dizer que lhe pediram para desempenhar funções que não pode executar.

_Diz-se que há empresas e organizações que não contratam colaboradores porque contam com o trabalho dos voluntários. Conhece casos destes?

Não é frequente chegarem queixas ao conselho, mas as que chegam demonstram que tal acontece com variadas instituições. Há algum tempo recebi dois ofícios da Inspecção-Geral da Segurança Social que me perguntava se era normal ter sete voluntários entre as oito pessoas da secretaria de uma determinada instituição. Claro que não é normal. Tivemos uma intervenção e explicámos que não podia ser assim. Isto é tão grave como pôr os voluntários, nos hospitais, a fazer trabalho para o qual não estão qualificados. Se um doente pedir a um voluntário que lhe mude a almofada, este não pode fazê-lo porque não sabe se está a prejudicar o doente. O voluntário deve chamar a enfermeira ou a auxiliar.

_Não sendo um trabalho remunerado, o voluntariado contribui muito para a riqueza do país.

O valor económico do voluntariado é muito elevado. São inúmeros os serviços, acções e actividades que teriam de ser exercidos por profissionais pagos se não existissem voluntários. O trabalho voluntário não existe para retirar empregos, é um complemento do trabalho dos profissionais. Num lar de idosos, o simples facto de haver um conjunto de voluntários que periodicamente vai visitar as pessoas é um complemento do trabalho que é desenvolvido pelos colaboradores do lar.

Mais e mais qualificados

_O que é que um voluntário ganha?

O voluntariado não serve para ganhar o céu. Até há pessoas que não crêem no céu mas acreditam nos outros. Um voluntário é uma pessoa que se assume como responsável por uma parte efectiva e afectiva do mundo. Um mundo que seria muito pior se não houvesse voluntários e que pode ser muito melhor se tivermos mais voluntários e mais esclarecidos, mais qualificados.

_Altruísmo, oportunidade de aprender, novas amizades, mas também reconhecimento e prestígio social. Estas são as principais motivações dos voluntários?

Também a liderança.

_As actividades de voluntariado não são remuneradas mas, além da gratificação pessoal, comportam outros benefícios para quem as pratica. Concorda?

Há de tudo, mas temos de ter cuidado nessa avaliação. Nas comunidades pequenas, as pessoas são bem vistas, mas se a motivação para fazer voluntariado for a intenção de integrar um determinado grupo ou circulo social, então está mal. A busca do reconhecimento social é mais frequente no voluntariado de direcção. Há pessoas que pensam que conquistam um certo estatuto por integrarem a gestão de uma instituição de solidariedade social.

_Mas os membros da direcção de algumas IPSS exercem funções remuneradas...

Não, nas instituições de solidariedade social as pessoas não são remuneradas. As IPSS são geridas por pessoas que oferecem os seus serviços, é o chamado voluntariado de direcção. Só se existir alguma excepção, mas não estou a ver. O que existe é uma compensação para despesas de representação, porque o voluntariado é gratuito mas não deve comportar encargos para as pessoas.

_Isso toda a gente compreende. No fim-de-semana passado foi fazer o lançamento do AEV no Porto. É evidente que não terá pago a deslocação, a estada, a alimentação...

Sim, mas venho todos os dias de Santarém para Lisboa e todas as despesas são por minha conta. Mas se me deslocar em Portugal ou para o estrangeiro recebo a compensação das viagens, estada e alimentação. Não são ajudas de custo, é uma compensação pelas despesas efectuadas.

_Algumas organizações não precisam de fazer grande esforço para conseguirem voluntários. Outras, porém, têm muitas dificuldades. Porquê?

O voluntariado pode ser exercido de forma continuada ou esporádica e a verdade é que é muito mais fácil encontrar voluntários para acções pontuais, sobretudo quando são muito mediatizadas. Por exemplo, quando há uma campanha do Banco Alimentar contra a Fome, que tem um papel fundamental e uma imagem de credibilidade, é fácil arranjar centenas de voluntários para colaborarem durante um dia ou dois. Já o voluntariado continuado enfrenta maiores dificuldades. Quem vai a um hospital contar histórias às crianças uma vez por semana, das 09h00 às 12h00, tem de cumprir, tem de organizar a sua vida pessoal, familiar, profissional, deixando sempre aquelas horas disponíveis para o compromisso que assumiu. Depois, também há organizações que sabem potenciar melhor o trabalho que desenvolvem enquanto a maioria ainda não consegue fazê-lo. A dinamização do voluntariado passa muito pela divulgação do trabalho realizado e que depende das pessoas comuns. É nas pessoas desconhecidas da opinião pública que assenta o voluntariado.

_Em Portugal, os níveis individuais de participação são baixos comparativamente a outros países da Europa. Porquê?

Não é verdade.

_Um estudo da Universidade do Porto diz que os voluntários em Portugal representam pouco mais de quatro por cento da população e outro, da Universidade Católica Portuguesa, que foi há pouco apresentado pela Entrajuda, não aponta números melhores...

Não conheço o estudo da Universidade do Porto e o da Entrajuda é um pouco redutor pois representa uma amostra muito pequena do universo do voluntariado. No final de 2011 poderemos conhecer a realidade do voluntariado em Portugal pois está a decorrer um estudo a nível nacional cujos resultados serão divulgados no final do ano.

Um BLV perto de si

_Desde 2006 que preside ao Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado (CNPV). Quais os principais resultados do trabalho desenvolvido ao longo destes anos?

A grande marca do CNPV foi a criação e dinamização dos Bancos Locais de Voluntariado (BLV). Os primeiros surgiram em 2002, hoje temos mais de noventa implementados no terreno e 35 em formação. São estruturas de nível concelhio que trabalham em parceria com as instituições de solidariedade do conselho, com as ONG, com a educação, saúde, etc.

_Muitos portugueses desconhecem os BLV. Têm pouca visibilidade?

Não, alguns têm desenvolvido trabalho meritório. O funcionamento dos BLV varia de região para região. São independentes da câmaras municipais embora estas, geralmente, disponibilizem os espaços e equipamentos de apoio. Quem tiver um programa exequível para promover pode dirigir-se ao BLV da sua região, que funciona como interface entre as organizações e as pessoas que querem ser voluntárias e que estão inscritas.

_Vivemos um momento particularmente difícil. De que forma é que o voluntariado pode ajudar-nos a ultrapassar as dificuldades em que nos encontramos?

O voluntariado é um instrumento privilegiado de luta contra a pobreza e a exclusão social. É um serviço de proximidade, de entreajuda e solidariedade, que encontra soluções para muitas situações de carência nas áreas da saúde, educação, acção social e outros direitos. E muitas das pessoas que viram os seus direitos promovidos através do voluntariado tornam-se voluntárias.

_Já não vai trabalhar todos os dias para o seu gabinete da Segurança Social, mas todos os dias dedica algum tempo ao voluntariado?

Entre o trabalho do conselho, reuniões no terreno e respostas a solicitações diversas por telefone e por e-mail, posso dizer que tenho um horário de trabalho de dez a 12 horas por dia.

BI

Em 1992, a Organização Internacional do Trabalho convidou Elza Chambel para montar a Segurança Social de Angola. Ela aceitou e ao desafio hercúleo ainda acrescentou outros. Porque quis. Quase vinte anos passados desde o primeiro contacto com os Salesianos que montaram uma espécie de escola no Mercado Roque Santeiro, em Luanda, onde pessoas dos 7 aos 70 anos aprendem a ler e a escrever, Elza Chambel continua envolvida em projectos de educação para o desenvolvimento também no Luena (antigo Luso), onde dinamizou uma rede de formadores de alfabetização. Um bichinho, o do voluntariado, que nasceu nos seus tempos de estudante no Liceu de Bragança, em Trás-os-Montes, onde começou a visitar pessoas carenciadas com uma professora de Físico-Química. Depois veio o curso de Direito, em Coimbra, e uma carreira na Segurança Social, onde desempenhou diversas funções e dinamizou inúmeras iniciativas de promoção do voluntariado. Elza Chambel tem 75 anos e está reformada desde 2002. Mas trabalho é o que não falta à presidente do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado, que também é coordenadora Nacional junto da Comissão Europeia para o Ano Internacional do Voluntariado.