22.8.11

Estado gere uma pequena parte das creches e lares mas quer delegar mais

Por Andreia Sanches, in Público on-line

Apenas 4,6 por cento da oferta em equipamentos sociais é gerida pelo Estado. Mas o plano de emergência social prevê transferência de mais 40 serviços para sector solidário.

Menos de cinco por cento da oferta existente em equipamentos sociais, como creches, centros de dia e lares de idosos, é gerida pelo Estado. A maior fatia da capacidade instalada está nas mãos do sector solidário, nomeadamente nas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), que detêm mais de 80 por cento dos lugares disponíveis.

Os dados a que o PÚBLICO teve acesso são os mais actualizados sobre os serviços de apoio às famílias do país. E mostram até que ponto o sector solidário já substitui o Estado - da rede fazem ainda parte as cantinas sociais, os centros de acolhimento para crianças em perigo ou os centros de apoio a deficientes, por exemplo. Mas o Ministério da Solidariedade e Segurança Social de Pedro Mota Soares quer ir mais longe.

Uma das pedras-de-toque do Programa de Emergência Social (PES), apresentado pelo Governo no início do mês, passa por reforçar a rede solidária - cujos custos de funcionamento são suportados pelos acordos de cooperação com o Estado (que define anualmente quanto paga por vaga e quantas vagas financia), pela comparticipação dos utentes (que pagam em função dos rendimentos) e pelas receitas próprias das instituições.

No final do ano passado, existiam cerca de 7700 instituições, com capacidade para 659 mil utentes, segundo dados que integrarão a Carta Social de 2010, um relatório do ministério que será publicado em breve. Destes, 261 eram propriedade de entidades oficiais (como os equipamentos da Casa Pia de Lisboa), com lugar para 30 mil pessoas (4,6 por cento de todas as vagas). O resto pertencia a privados com fins lucrativos, a IPSS e, residualmente, a serviços sociais de empresas (ver infografia).

Uma das medidas previstas no PES passa por transferir para instituições de solidariedade, através de concurso, 40 equipamentos que são actualmente públicos - 15 por cento dos que estão actualmente sob tutela directa do Estado. Até onde é que se deve ir? "Para mim, já é grave que o Estado tenha um peso tão pequeno nas respostas sociais, quanto mais abrir mão de ainda mais equipamentos", diz Maria do Carmo Tavares, da CGTP-In, que integra a Comissão Nacional do Rendimento Social de Inserção. "Fala-se tanto dos efeitos prejudiciais dos monopólios, mas já há um monopólio das IPSS! Que pagam miseravelmente aos trabalhadores e que por isso conseguem oferecer serviços a mais baixo custo do que o Estado", continua.

A sindicalista teme ainda que este "monopólio" possa criar problemas de igualdade de acesso aos serviços. "É um problema para a qual a CGTP já tem alertado. Há lares que preferem receber idosos com reformas elevadas, para receberem uma comparticipação maior do utente. Porque os custos das instituições são suportados por um "X" que o Estado dá à cabeça e pela comparticipação da família ou do utente. E as instituições estão sempre a dizer que a comparticipação do Estado não chega..."

O Estado gere pior?

Esta visão crítica está longe de ser partilhada pelas instituições solidárias. Manuel de Lemos, da União das Misericórdias Portuguesas, entende que "faz sentido que o Estado entregue o maior número possível" de equipamentos. Desde logo, porque gasta mais para fazer o mesmo que o terceiro sector faz, argumenta. Porquê? "O Estado tem regras próprias, salariais, mas não só. Se eu, numa misericórdia, preciso de comprar um computador, peço para comprar; se for no Estado, tem que haver lá um funcionário que tem que fazer três estudos e comparar e depois decide. Depois, há a questão da proximidade, os provedores estão muito próximos da gestão dos seus equipamentos. O Estado, não."

Eugénio Fonseca, da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), diz que desconhece em que termos a transferência de equipamentos será feita - "Por exemplo, o pessoal vai ser transferido? Em situação de igualdade com os funcionários do sector solidário? Ou mantendo o regime que tinha?"

Mas apesar das interrogações - ontem o ministério voltou a dizer que os pormenores serão divulgados mais tarde -, Eugénio Fonseca entende que o princípio que está na base do PES é bom. Sendo certo que, acredita, o Estado terá sempre que se manter à frente de certos equipamentos, em áreas onde o sector solidário não dá resposta. Para além de que tem que ter um papel regulador "no sentido pedagógico" e de "monitorização das necessidades, potenciando as respostas mais adequadas".Manuela Silva, economista, acredita que há muitas maneiras de o Estado cumprir a sua missão: com equipamentos próprios; contribuindo financeiramente para o terceiro sector ou contratualizando com privados, mantendo um papel fiscalizador. Mas não é má ideia que continue a gerir alguns serviços: "O Estado precisa de ter equipamentos para ir aperfeiçoando as respostas - e devem ser estabelecimentos exemplares - e acompanhando os custos reais". Só desta forma consegue estabelecer padrões de referência para as entidades para as quais transfere competências.

Uma coisa é certa: a transferência de recursos do Estado, com a qual Manuela Silva concorda em geral, deve ser acompanhada de maior capacidade técnica para os gerir. "Não pode ser só dar mais um envelope às instituições."

Aposta na economia social

Manuel de Lemos admite que haverá misericórdias que não são tão bem geridas e daí que tenha lançado um plano de formação que abarcou, no ano passado, 85 dirigentes e que este ano chega a mais cem. Mas sublinha também que há um problema financeiro real, nalguns casos. Cada vez mais instituições são chamadas a arcar com os custos que as empobrecidas famílias dos utentes deixaram de conseguir suportar. Acabará por chegar a altura em que será preciso, acredita, rever o modelo de comparticipações do Estado. Mas as misericórdias não têm pressa. "Neste momento interessa trabalharmos juntos porque a pressão [social] tem aumentado muito nos últimos anos."

Eduardo Graça, da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), na qual têm participação organizações como a CNIS, não tem dúvidas. "O Estado tem tudo a ganhar em estabelecer parcerias com as entidades que estão no terreno porque são elas que gerem de forma mais eficaz os recursos." Em Setembro, a CASES promoverá, de resto, uma série de conferências sobre o papel da economia social - que na União Europeia representa já 10 por cento do conjunto das empresas. "Creio que hoje ninguém tem dúvidas", conclui Manuela Silva, que "é preciso apoiar as entidades que não funcionam segundo critérios de maximização de lucros".

Em Portugal não se sabe ao certo qual o peso da economia social no PIB (rondará os cinco por cento). Mas, no seu discurso sobre o PES, Mota Soares deu outros argumentos, para além da necessidade de prestar melhores serviços, que justificam, na sua opinião, medidas de apoio às instituições, como a criação de uma linha de crédito ou a simplificação das regras de funcionamento. As dez mil organizações que constituem o terceiro sector, recordou, empregam 250 mil pessoas, entre as quais "pessoas com idades mais avançadas". Mais: este sector "não se deslocaliza, ao contrário de outras empresas, e trabalha primordialmente ligado à economia local, pelo que diminui importações".