24.11.11

Isabel Capeloa Gil. “O século xx mostrou-nos que podemos não ter futuro”

Isabel Capeloa Gil. “O século xx mostrou-nos que podemos não ter futuro”
Por Nuno Ramos de Almeida, in iOnline

Vivemos num mundo perigoso. As tecnologias e a natureza são potencialmente mortais de que forma as ciências sociais pensam a nossa vida numa sociedade do risco

A conferência realizou-se em Novembro no Mosteiro da Arrábida. O desafio foi juntar especialistas de muitos cantos do mundo para discutir o futuro perante as catástrofes. A professora Isabel Capeloa Gil, do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica, foi a organizadora do evento. Um tema actual num mundo ameaçado pela poluição, pelas guerras e pelos desastres tecnológicos e naturais.

O tema da vossa conferência era “O futuro em risco”. Não acha que o nosso futuro também está em risco porque as sociedades humanas perderam a ideia de pensar nele?
A modernidade europeia assenta numa ideia de progresso e de melhoramento contínuo. Essa concepção era naturalmente utópica, basta lembrar o famoso texto de Voltaire sobre o terramoto de Lisboa de 1755 (“Cândido ou o Optimismo”), em que ele critica a crença utópica e optimista relativamente ao futuro, de que viveríamos numa sociedade civilizada que teria sempre tendência a melhorar e nunca a piorar. A mudança que o século xx trouxe foi começarmos a pensar que o futuro poderá não ser bom, e até pode não haver futuro. Temos uma sociedade em que a tecnologia está a atingir níveis insuperáveis, em que as descobertas ao nível das ciências e das tecnologias acontecem todos os dias, mas por outro lado o impacto desses desenvolvimentos não conduzirá obrigatoriamente a um melhoramento da vida. É natural que as pessoas considerem que o futuro esteja em risco. A grande mudança destes tempos mais recentes é que este pessimismo se aplica mesmo ao presente.
Mas não acha que nas sociedades actuais há uma certa negação do futuro? Parece que as pessoas apenas estão a ver o tempo presente. Não se vêem políticos a falar para além do ciclo eleitoral, as pessoas apenas pensam no seu consumo diário...
Há um imediatismo associado a uma sociedade profundamente consumista e materialista. Apesar de o comunismo ser uma doutrina profundamente ultrapassada, as sociedades actuais, das mais conservadoras às supostamente de esquerda, são profundamente materialistas. Perderam o sentido do transcendente. Há uma crença de que as condições reais do momento é que valem. Tem-se perdido sentido religioso. Apenas se dá importância a uma realização no imediato. Isso é muito visível até nas crianças. Projectam cada vez mais os seus desejos em objectos materiais. Uma vez conseguido um é desejado outro, e assim sucessivamente. É um exemplo da crise em que vivemos. Claro que necessitamos de condições de vida, o que é o ideal das sociedades civilizadas, mas é grave não conseguirmos pensar para além do curto prazo.
Esta ideia de uma sociedade que caminha para o abismo, tão presente em autores da escola de Frankfurt que faziam uma certa mistura entre redenção e utopia como Walter Benjamin, não é contrariada por outros que consideram que o progresso vai sempre resolvendo os problemas que se vão pondo? Estas concepções estão presentes na argumentação dos cépticos acerca do aquecimento global.
Um importante geofísico norte-americano notava que o cenário da destruição total é algo que vive connosco: daqui a um ano, daqui a dez, daqui a mil, daqui a um milhão de anos haverá um acontecimento de destruição total do planeta. Muito bem, que podemos fazer para o impedir? Nada. Temos de tratar é das nossas pequenas questões do presente. Perante este cenário apocalíptico há duas hipóteses: para os pessoas como os cientistas naturais trata-se de resolver no presente as necessidades que temos, para mantermos a vida no tempo que tempos. Há outra resposta, que é resposta que tem vindo a perder cada vez mais leitores ou ouvintes, que é a resposta que vem das humanidades ou das ciências sociais. Dizer que tudo isto é verdade mas nós temos de lembrar que há um capital cultural, que aquilo que nos faz resistir a essa iminência do desastre é termos ligações identitárias e tradicionais que nos mantêm enquanto seres humanos dignos. A qualidade da nossa vida é importante, mas a característica dos seres humanos é definida por outras coisas. A nossa crise deve-se também a não conseguirmos reflectir para além dessa dimensão puramente técnica. Como se o utilitarismo técnico fosse uma espécie de macronarrativa única.
Nas ciência sociais a concepção da sociedade do risco tem muitas décadas. Apesar deste alerta dos cientistas sociais, verificamos que no Japão depois do tsunami e do desastre nuclear as autoridades vão voltar a erigir as centrais nucleares, apesar de o risco ser incalculável embora a probabilidade dos desastre seja pequena.
Um dos elementos mais interessantes desta conferência foi o confronto entre modelos ocidentais e modelos japoneses e da Indonésia. Tivemos um psicólogo que trabalhou com populações da ilha de Java que vivem em permanência na iminência do desastre e que depois acabaram por sofrer um tsunami. E também as pessoas que no Japão trabalham com vítimas do terramoto e do desastre atómico. Verificaram-se duas perspectivas muito diferentes: a ocidental e a oriental. Nós temos uma perspectiva de controlo. Diagnosticamos o risco e queremos encontrar mecanismos para minorar o que sucederá, mesmo que as probabilidades desse controlo sejam mínimas. Por exemplo, a possibilidade de evitar um choque de um asteróide com o planeta Terra é ínfima, mas grande parte dos norte-americanos acredita que haverá uma ogiva nuclear, como nos filmes, que evitará no último minuto esse cataclismo- Seja ou não a partir de uma nave comandada pelo Bruce Willis. Há um paradigma de tentar através da ciência o controlo da situação. É óbvio que no Japão também há essa preocupação de minorar as possíveis catástrofes, mas é muito importante perceber que nas sociedade orientais acresce a isso outra forma de ver as catástrofes. Basta ver a maneira como os japoneses reagiram a Fukushima, ao tsunami e ao desastre nuclear. Na conferência tivemos dois discursos diferentes sobre isso: o do embaixador do Japão, que abordou as falências das políticas anteriores, e o que estão a fazer no sentido de repensar o programa atómico. Sublinhando, a necessidade do país conseguir tempo para alterar as sua políticas energéticas: diminuindo o peso da energia atómica em relação às energias alternativas. E um segundo discurso, da parte das pessoas que trabalham com as vítimas no terreno, totalmente diferente. Estes explicaram-nos que o conceito de catástrofe no Japão e a palavra que o expressa está muito perto da palavra “felicidade”.
O que diz muito sobre a felicidade deles...
[Risos] Aqui já não estamos no paradigma do controlo, mas na capacidade de incluir o risco na vida. A catástrofe vem, faz parte da vida, e é necessário aceitá-la.
O problema é que o nível da construção tecnológica envolve-os na catástrofe não só a eles, mas a toda a gente. Esta civilização tecnológica não nos lavará inevitavelmente à catástrofe, a não ser que interrompamos este rumo da história, como defendia Benjamin?
Esta visão é um pouco niilista. O Benjamin quando coloca o anjo da história recria uma figura que olha para o passado em que se acumulam por todo o lado ruínas, sem conseguir alterar o rumo para o futuro. É uma imagem de impotência total. É a ideia de que o ser humano introduz na Terra a sua capacidade de autodestruição do planeta. Mas Benjamin tinha também essa ideia de transcendência. O grupo do Japão que participou nesta conferência. A nossa ideia foi trazer diversas linguagens e tentar perceber como as ciências sociais e humanas funcionam perante a catástrofe. Tínhamos sociólogos, antropólogos, tecnólogos, historiadores, especialistas em media, com perspectivas muito diferenciadas. E os japoneses trouxeram esta noção que é intelectualmente impensável para nós da representação do desastre. Falaram do conceito de Mojo, a ideia de ciclo, de que a vida flui entre o tudo e o nada. Que a vida continua por outras formas. Uma das perguntas que se fez com o embaixador é o que diz sobre os engenheiros que ficaram nas centrais sabendo que iam morrer. E como pretendia o governo honrar esse memória? Ele disse uma coisa muito interessante: eles fizeram aquilo que se esperava deles. Como japoneses, todos teriam feito o mesmo. O sacrifício do indivíduo pela comunidade é o que era de esperar.
Isto no limite não é um pensamento perigoso? Se a catástrofe faz parte da natureza, podemos livremente jogar na energia atómica, mesmo que ela nos leve ao desastre...
Todos aprendemos com a catástrofe. Os alemães acabaram com o programa atómico, os japoneses estão a repensar o deles, mas do ponto de vista cultural há várias formas de apreender o fenómeno.
Na nossa cultura a indústria cinematográfica ao exibir filmes de catástrofe não pretende acalmar eventuais ansiedades e integrá-la na nossa vida?
É uma forma de exorcizar, mas também é uma forma de mostrar que temos controlo. Todos os filmes de catástrofe acabam bem. Mesmo quando a Terra é destruída há um avião que se salva. Sair bem do filme corporiza uma narrativa do controlo. Não há muitos filmes de murro no estômago desta temática.
Um dos aspectos abordados na conferência foi a mediatização das catástrofes. A transmissão mediática desses acontecimentos não tem, para além de noticiar o sucedido, o efeito de vulgarizar essas imagens, tornando a catástrofe uma coisa aceitável?
Sim, há vários estudos, por exemplo sobre o 11 de Setembro, que dizem há um embotamento do espectador perante a repetição das imagens de catástrofes. Embora haja outro facto a realçar. A maior parte destes estudos pressupõe que todos os públicos reagem de uma forma previsível e isso nem sempre é assim. Há por vezes uma certa perversidade no espectador. Isso é inerente ao ser humano, essa capacidade de ter reacções diversas, fora do esquema.
Há pensadores que afirmam que é mais fácil as pessoas aceitarem uma catástrofe que acharem possível mudar o mundo. Estamos condenados a este caminho.
Não estamos condenados. Eu não sou nada determinista nem catastrofista. Apesar de os cenários serem negativos, aquilo que marca os seres humanos é a capacidade de mudança perante as dificuldades. Podemos estar a ser manipulados por discursos que dizem que não há solução e que as coisas são inevitáveis. Mas não é pensável que com todo o capital humano que temos estejamos condenados ao determinismo.