11.12.12

Em casa é que eles não ficam

Vanessa Batista, in Público on-line

Há quem dance o cha cha cha e o quickstep, e quem volte a ser estudante universitário. Três em cada dez pessoas adopta práticas de envelhecimento activo.

Com os sapatos de dançarino calçados, o laço posto e todo perfumado, Manuel Guerreiro, de 79 anos, prepara-se para a sua aula de cha cha cha. Gabriel Freitas, com os seus 81 anos, já está sentado com a esposa à espera que a aula de Sociologia comece.

Depois de uma sessão de ioga, é altura de Felisbela Almeida, de 64 anos, dar “um carinho como sobremesa” aos doentes do Hospital de Santa Marta, em Lisboa. A escrever à mão um artigo sobre o filme O Quinto Império – Ontem como Hoje de Manoel de Oliveira, está Vítor Cardoso, de 76 anos. Este é o Ano Europeu do Envelhecimento Activo e da Solidariedade entre Gerações e 30% dos mais velhos está em actividade, diz um estudo coordenado por Manuel Villaverde Cabral, director do Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa (UL).

São “uma minoria”, diz Villaverde Cabral. O estudo intitulado “Processos de Envelhecimento em Portugal: Usos do tempo, redes sociais e condições de vida” foi apresentado pela primeira vez no mês passado, durante o 50.º aniversário do Instituto de Ciências Sociais da UL. Mil pessoas com mais de 50 anos foram inquiridos em 2011.

Manuel Guerreiro começou a ter aulas de danças de salão três anos após a morte da mulher. “Teve de ser, para me distrair, porque estava a ficar muito apanhado”, confessa. Tem 79 anos, fazendo parte da faixa etária que menos mostrou aderir às práticas de um envelhecimento activo, segundo o estudo. A partir dos 75 anos, apenas 9% está em actividade.

Antigo pescador, Manuel Guerreiro chegou a passar sete meses num navio sem ver terra. Agora, quer é “mexer-se” e estar rodeado de gente. Embarcou há cinco anos nesta aventura, e já está no último nível. Sabe as danças todas desde o cha cha cha ao quickstep, passando pelo jive. “Cheguei tão rápido aos avançados porque vinha todos os dias, queria passar nas avaliações todas”, revela. Sublinhando a dificuldade dos passos, Manuel Guerreiro enumera os nomes de alguns e confessa que a sua maior dificuldade está em memorizá-los.

"O velho não se mede pela idade. Quem tem o cérebro virado para o futuro, para a aprendizagem, procura e curiosidade, será eternamente jovem”

Joaquina Madeira
Agora, Manuel Guerreiro dança duas horas à segunda e quarta-feira; quatro ao sábado e vai domingo aos bailes, sempre na companhia de um amigo de infância. Gaba-se de ser classificado pelos colegas e professores como o mais bem vestido da escola de dança Alunos de Apolo, em Lisboa. Vai de fato e laço pretos, sapatos de dançarino, e todo perfumado. Chamam-lhe Fred Astaire por estar sempre a dançar, mesmo fora do salão. “Tenho muitos amigos aqui, até as jovens gostam de dançar comigo”, diz Manuel Guerreiro, explicando que costumam organizar jantares entre todos.

A cerimónia de encerramento do Ano Europeu do EnvelhecimentoActivo e da Solidariedade entre Gerações realizou-se na segunda-feira, dia 3. Joaquina Madeira, presidente do projecto em Portugal, afirmou que este trabalho de 2012 quer provar que “o que faz as pessoas não envelhecerem na cabeça é ter projectos, objectivos e paixões. Isso é que é o suporte e motor da vida de qualidade nas várias etapas. O velho não se mede pela idade. Quem tem o cérebro virado para o futuro, para a aprendizagem, procura e curiosidade, será eternamente jovem”.

Boas práticas de envelhecimento
Gabriel Freitas resolveu, aos 60 anos, voltar a estudar por “curiosidade” mas acabou por se tornar muito mais do que isso. Passados 21 anos, agora com 81, olha para trás e vê que “parcialmente” concretizou “o sonho de tirar um curso superior, talvez de advogado”. Em jovem, tinha estudado até ao 12.º ano. Segundo o estudo coordenado por Manuel Villaverde Cabral, a escolaridade tem efeito nas boas práticas de envelhecimento. Mais de 65% dos inquiridos que tem o ensino secundário como habilitação literária, ainda pratica alguma actividade.

Na Universidade de Lisboa para a Terceira Idade, Gabriel Freitas ri, conta anedotas aos seus colegas e histórias do tempo em que era jovem. De vez em quando, o ambiente torna-se ainda mais festivo: desde visitas de estudo a festas académicas e espectáculos da tuna, a que gosta de assistir.

Mas há uma colega muito especial: a sua mulher. Casados há meio século, as matérias que ouvem nas aulas, desde a Sociologia à História e Turismo, passando pela Língua Portuguesa vieram introduzir novos temas de conversa na vida deste casal. “Quando chegamos a casa pomo-nos no sofá a comentar as lições”, conta.

“É salutar para mim ajudar os outros a ter um bocadinho mais de saúde, ouvindo-os e fazendo-os acreditar, porque há muitas pessoas que não têm visitas, ninguém com quem desabafar”

Felisbela Almeida
Tem aulas três dias por semana das 10h às 16h. “Não é brincadeira, ao início vinha todos os dias e fartava-me de tirar apontamentos. Agora já sou veterano é só sentar, ouvir e fixar”, diz, garantindo que não encontra dificuldades nos estudos. “Quanto mais aprendo, mais quero aprender. Se não venho, sinto falta”, sublinha. As aulas decorrem entre interacções, opiniões dos alunos e leituras de obras clássicas como trabalho de casa, como Viagens na minha Terra de Almeida Garrett.

O estudante de 81 anos utiliza quatro transportes diferentes para chegar à universidade. O passe custa cerca de 43 euros, e as propinas 100 euros anuais, fora as fotocópias. Gabriel Freitas diz que “aguenta bem os custos” e que não se pode queixar da reforma que tem. Segundo o estudo da UL, os determinantes sociais condicionam em cerca de 46% a prática, ou ausência dela, de actividades próprias do envelhecimento activo. Esses determinantes são, por ordem de peso estatístico, a idade, o género, a escolaridade, o estatuto sócio-profissional e o rendimento do agregado familiar. O estado de saúde eleva esta percentagem para os 50%.

Deprimida por estar em casa
Aos 64 anos, Felisbela Almeida também já começou a combater a velhice sedentária. “Já estava a ficar muito deprimida em casa, sempre metida no computador a jogar”, conta. Antiga educadora de infância e com as filhas fora do país a estudar, voltou a pensar mais em si. Começou a fazer voluntariado e ioga. Acima de 80% dos inquiridos que terminaram o ensino superior, ainda está activo, segundo o estudo.

Estas ocupações têm para a reformada algo de espiritual. “Sinto-me melhor comigo, tomo mais atenção às pessoas e ao mundo”, diz. Como voluntária no Hospital de Santa Marta, Felisbela Almeida ajuda doentes adultos a sentirem-se melhor. “É salutar para mim ajudar os outros a ter um bocadinho mais de saúde, ouvindo-os e fazendo-os acreditar, porque há muitas pessoas que não têm visitas, ninguém com quem desabafar”, conta.

O grupo que mais mostrou aderir às práticas de um envelhecimento activo foi o da faixa etária dos 50 aos 64 anos: 40% afirmou ocupar o seu tempo com alguma actividade. A voluntária diz que tem como funções dar a medicação, a refeição e um “carinho como sobremesa”. E qual é a recompensa? São muitas histórias para contar. “Uma senhora ensinou-me a fazer pastéis de bacalhau à moda dela e tudo”, exemplifica.

Felisbela Almeida encontrou no ioga uma forma de se “exprimir melhor”. “Faz-me bem ao espírito, mais do que ao corpo”, sublinha. “Tem-me ajudado a ter uma postura e maneira de ser diferentes, e a ter mais força para controlar uma carga agressiva que às vezes tenho”. Apesar de admitir que os exercícios são “puxados”, afirma ser “recompensador”.

As mulheres praticam menos actividades do que os homens, 20% das mulheres é activa, enquanto que nos homens a percentagem é o dobro, diz o estudo financiado, e editado em breve, pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

E quando é que não querer ficar em casa é sinónimo de continuar a trabalhar? “Não sou capaz de ficar só a receber a reforma, aflige-me ver montes de idosos inactivos a jogar às cartas nos jardins. Eles ainda podiam dar mais qualquer coisa a eles próprios e ao país”, reclama Vítor Cardoso. Tem 76 anos e é responsável pela parte comercial do Jornal do Barreiro, escrevendo também a página cultural do órgão e um apontamento de vídeo para o Jornal do Algarve.

Manuel Villaverde Cabral defende que “é bom continuar a trabalhar” mas deixa um “parêntesis”: “Isto se o trabalho for interessante, bem remunerado, se o trabalhador tiver saúde e gostar do que faz”.

O homem de 76 anos diz que não trabalha por causa da remuneração, já que não recebe pelos artigos que escreve para o Jornal do Barreiro. “Estimula-me o cérebro. O trabalho só tem consequências positivas para a minha vida. É uma terapia diária”, sublinha.

“De resto consigo fazer tudo, eu posso ser uma carcaça velha mas em espírito jovem!”
Vítor Cardoso

Vítor Cardoso descreve o jornalismo como “uma paixão desde pequeno” e defende que “as pessoas só devem continuar a trabalhar depois da reforma se gostarem realmente do que fazem, porque já bastou os anos de trabalho por obrigação”.

Num artigo publicado este ano na Canadian Social Science, intitulado “Idade e Ajustamento: Um Estudo Qualitativo Internacional sobre as Percepções dos Idosos” levado a cabo por Sofia von Humboldt, investigadora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, de Lisboa, é possível verificar que, dos 52 portugueses com mais de 74 anos inquiridos no ano passado, 64,2% mencionou a importância de se sentir útil, válido e vivo. “A procura de um sentido existencial, realização pessoal, de preferência na companhia de pessoas significativas, e ter objectivos, é importante para os idosos portugueses. Não querem simplesmente viver mais tempo, mas sobretudo viver melhor”, diz a investigadora.

O ambiente do trabalho faz Vítor Cardoso sentir-se bem. “Os colegas ajudam-me muito, transcrevem a computador todos os meus artigos porque ainda os escrevo à mão”, explica, admitindo que a sua única dificuldade reside nas tecnologias. “Mas de resto consigo fazer tudo, eu posso ser uma carcaça velha mas em espírito jovem!”