25.2.13

Não os vemos e vemo-los por todo o lado, mas é como se não existissem

José António Cerejo, in Público on-line

Abrigados sob viadutos e em locais onde ninguém os vê, ou instalados no meio da rua, à vista de todos, os cidadãos romenos que pedem nas ruas de Lisboa vivem como bichos. Ninguém sabe o que fazer com eles.

O que admira é que o charco escuro de águas paradas não tresande.


Ali tudo é lixo, detritos sem nome, trapos encharcados, lama, restos de fogueiras, fezes. E barracas, muitas barracas de canas e cartão - as de lata dos bidonvilles portugueses dos anos 1960 eram uma extravagância parisiense, impensável sob este viaduto de Sete Rios, Lisboa, ao princípio da tarde de sexta-feira. A mulher jovem que lá está sozinha, de guarda e de faxina, ajeita uma pedaço de dois palmos de carne vermelha e barata em cima de uma pedra. Os paus acesos no chão, no meio de toda aquela desolação, nem parece darem fogo, muito menos calor. A rapariga, vestida de cores garridas até aos pés, ergue-se, entre assustada e impotente. Sorri a medo, gesticula para afastar a objectiva do fotógrafo, mas tranquiliza-se com duas palavras: "Não polícia!" E responde: "Romani, romani...", a apontar para o peito.

Aparentemente não percebe mais nada. Fica ali, imóvel, de pé, sem saber o que fazer. À frente tem o charco que envolve um pequeno núcleo de barracas coladas aos grafitti de um pilar do viaduto. Por trás dela alinham-se trinta a quarenta barracas quase todas iguais: meia dúzia de canas espetadas no chão e outras tantas na horizontal, presas às primeiras com atilhos, formam a estrutura; as parede e os tectos, a um metro do solo, são feitos de cartões e panos. Lá dentro cabem duas ou três pessoas, ou mais, se amontoadas. Cuecas de crianças entre o lixo fazem pensar que não são só adultos quem ali vegeta.

Fora a rapariga pasmada não há mais ninguém. Os outros, 60?, 100?, andam a fazer pela vida. Logo ali, em Sete Rios, nos acessos ao Eixo Norte-Sul que lhes dá abrigo, onde esmolam nos cruzamentos e tentam vender o Borda d"Água. Mais longe, pelas ruas da cidade, a fazer o mesmo ou outra coisa qualquer, mas sempre com escasso proveito, a avaliar pelo que se vê à beira do charco.

Já no centro de Lisboa, a pouco mais de cem metros da Câmara de Lisboa, não há ramais rodoviários, povoados de carros a grande velocidade a separar a terra dos outros da terra deles. Estão ali à vista de nós todos, a entrar pelas janelas dos autocarros, pelas narinas de quem vai a pé, pelo pára-brisas do automóvel de António Costa. Mas o cenário, em escala reduzida, é igualmente degradante: barracas de cartão, outras armadas com materiais da obra municipal da Ribeira das Naus, um triângulo de terra devastado que já foi um pedaço de jardim, encostado ao parque de estacionamento da EMEL do Corpo Santo, e três árvores que não os escondem, nem às suas fogueiras, nem à sua intimidade.

Às vezes, dizem os vizinhos, os humores azedam e há gritos e polícias. No sábado, a Polícia Municipal esteve lá mais uma vez. Muitos desapareceram, mas vão voltar, como acontece há anos. Os seus parcos haveres, amassados em sacos de plástico, ficam escondidos numa galeria subterrânea, feita para cabos de telecomunicações, com tampa no passeio.

Mais do que em Sete Rios, onde ninguém os vê - a não ser a Polícia Municipal quando lá vai desmantelar o acampamento por motivos de "salubridade" e porque "a lei não permite fazer barracas", justifica o seu comandante, André Gomes -, no Corpo Santo há muitas queixas de comerciantes e vizinhos. "É um problema muito difícil de resolver, a situação já foi pior, há uns seis anos, quando a Roménia entrou para a União Europeia", reconhece André Gomes. "Eles têm o direito de circular porque são cidadãos da União, mas há aqui direitos conflituantes, porque não se pode fazer barracas nem criar insalubridade." A 15 de Janeiro, por essas razões, a polícia removeu dezenas de barracas debaixo do viaduto de Sete Rios. Mas no dia seguinte a reconstrução começou. E é assim há mais de dois anos. "A solução era vedar o terreno", afirma André Couto, presidente da Junta de Freguesia de Campolide, que diz não ter poderes para o fazer.

"Acho que a Câmara de Lisboa tem de fazer alguma coisa, o assunto está a ser estudado", diz Helena Roseta, vereadora da Acção Social, que salienta a complexidade do assunto. "Tem de haver uma intervenção organizada da Rede Social de Lisboa, sobretudo da câmara e da Misericórdia", reconhece a autarca. "Tem de se encontrar algum enquadramento para estas pessoas que não têm quaisquer direitos sociais."