28.3.14

A música salvou a vida de Alice

Texto de Nancy Rodrigues, in Público on-line (P3)

A Alice era a mais antiga sobrevivente do holocausto nazi, morreu este ano em Londres, aos 110 anos. Ficaria a ouvir as suas historias horas sem fim


Sempre adorei gente mais velha. Quando digo mais velha refiro-me mesmo aos nossos avós, bisavós, aqueles que já viveram muitos anos, sofreram muitas dores e viveram muitas alegrias. Gente que já viveu o suficiente para poder dar os conselhos, gente que já tem matéria para verdadeiramente avaliar uma vida. Gente que já pôs os pés num futuro que ainda não é meu. Por isso, fiquei absolutamente fascinada ao ver o documentário “Alice: The Lady in Number 6: Music Saved my Life”, vencedor de um Óscar para melhor documentário este ano.

E porquê este fascínio? A Alice era a mais antiga sobrevivente do holocausto nazi, morreu este ano em Londres, aos 110 anos. Ficaria a ouvir as suas historias horas sem fim. E pensam vocês, caros leitores: "Ah sim, deve ter sofrido imenso, sobreviveu ao holocausto e, por isso, como tantos outros judeus , é uma personagem inspiradora". Contudo, quem viu este documentário sabe que se trata de muito mais do que isso. Percebe que há uma mensagem muito maior que vai mesmo além do próprio holocausto.

“There were beautiful moments there. Even the bad was beautiful when you know where to look for. It has to be”, diz Alice com uns olhos enternecedores que espelham uma imensa vida já vivida. Esta foi a frase que mais me marcou e que para mim sintetiza este documentário.

Como é que se pode ter esta postura, esta atitude, quando se esteve preso num campo de concentração nazi? Percebi então que Alice sobreviveu e tem esta atitude positiva perante uma das mais horrendas realidades da humanidade porque, para aquele campo de concentração, levou consigo uma das suas grandes paixões: a música.

Alice era uma excelente pianista no seu país de origem, a Republica Checa. Em 1943 foi levada para Terezin, um dos campos concentração nazis situado na actual Republica Checa. Ali, Alice junta-se a um grupo de judeus eruditos seleccionados pela Gestapo para fazer a chamada "propaganda", com o objectivo de enganar o mundo ao tentar mostrar o quão bem tratados eram os judeus. No caso de Alice, enquanto pianista, tinha de tocar piano para os colegas prisioneiros como se à sua volta nada de estranho acontecesse.

Agora perguntamo-nos: "Quem é que consegue tocar piano e sentir prazer com isso, estando num campo de concentração com um único fim — a morte?" Conseguem pessoas como a Alice. Se na vida amarmos algo como a Alice amava a musica — "music is the only thing that helps me to have hope, it's a sort of religion, actually. Music is God" , estamos preparados para enfrentar as maiores dificuldades da vida.

Agarremo-nos, por isso, a algo que nos dê prazer, descubramos uma forma de arte que nos eleve, seja a música, a leitura, a escrita, o cinema, a pintura... O gosto pela arte faz certamente de nós não só melhores seres humanos como também seres preparados para enfrentar os desafios e as dificuldades da vida com mais esperança e dignidade.