27.3.14

Uma pistola num carrinho de bebé, um machado junto à cama “para desmanchar o porco”

Andreia Sanches, in Público on-line

Confrontos de 2008 na Quinta da Fonte chegaram a julgamento. Compareceram no tribunal de Loures 12 arguidos. Dois faltaram. E um outro, acusado de detenção de arma proibida, ficou de fora porque o crime já prescreveu.
A próxima sessão está marcada para dia 9 de Abril Rui Gaudêncio

Foi interrompido pouco depois de ter começado porque um dos arguidos começou a prestar declarações sem que o tribunal se tivesse apercebido que não estava presente o seu defensor — “Tudo o que fizemos até agora não tem valor nenhum”, desabafou a juíza. Começou nesta quarta-feira o julgamento do “processo da Quinta da Fonte”, o bairro de Loures que, em Julho de 2008, foi palco de tiroteios em plena rua provocados por um desentendimento entre moradores de etnia cigana e outros de origem africana.

Afinal, não são 15 os que se sentam no banco dos réus, como tem sido noticiado, mas sim 14 — o crime de que vinha acusado um dos que fazia parte do grupo inicial (detenção de arma proibida ) acabou por ser considerado prescrito. O advogado de pelo menos mais um dos acusados já requereu a prescrição do crime imputado ao seu cliente. Quanto à sessão do julgamento, foi retomada mal foi encontrado o defensor que faltava.

O episódio da “guerra” na Quinta da Fonte, que fez com que durante dias a fio o bairro fosse ocupado pela polícia, foi relembrado ao longo de várias horas, nesta quarta-feira, sobretudo pelas testemunhas ouvidas a pedido do Ministério Público: elementos da PSP chamados ao local no segundo dia de tiroteios e inspectores da Polícia Judiciária que participaram na investigação.

Muito faladas foram também as imagens dos confrontos que, na altura, passaram nas estações de televisão — e que foram obtidas por alguém que estava no bairro, cuja identidade nunca foi possível apurar. Alguns advogados (participaram 13 no julgamento) estavam interessados em perceber os detalhes de como foi feita a identificação de alguns dos seus clientes através das filmagens.

Em suma, ontem compareceram seis arguidos de etnia cigana. O rosto mais conhecido do grupo é o do homem que, depois dos confrontos, foi entrevistado por vários órgãos de comunicação social como sendo o porta-voz da comunidade cigana na Quinta da Fonte. Foi identificado como alegado participante do motim através das ditas filmagens.

Há também uma mulher entre os arguidos ciganos. Na sua casa foram encontrados, logo no segundo dia de confrontos, uma pistola, num carrinho de bebé, outra pistola, na casa de banho, e uma espingarda caçadeira junto à porta, para além de várias munições e carregadores. Nenhum dos seis quis falar ao tribunal, para já.

Compareceram ainda seis arguidos de origem africana — durante a sessão, a juíza esclareceu uma das testemunhas que “a etnia é cigana, a raça é negra”, pelo que é assim que se deve dizer. Cinco quiseram prestar declarações. Para alegar, no essencial, que as armas que a polícia encontrou, já em Setembro de 2008, nas casas onde viviam, não eram suas.

Um dos arguidos explicou que a faca de 20,5 cm de comprimento que estava junto à sua mesa de cabeceira foi a mãe que a trouxe da Guiné. A procuradora do Ministério Público quis saber o porquê de se ter uma faca daquelas junto à cama e, face à ausência de respostas, perguntou se era para “macumba” — “Vamos supor que o senhor andava com espíritos...” E o arguido confirmou que era para algo desse género.

Outro explicou que o machado de 32 cm, que tinha atrás da cama, era da mãe e apenas servia para “desmanchar o porco” e que os três bastões também apreendidos serviam para a mãe se defender do marido. Não para agredir mais ninguém.

Outro ainda alegou que os cartuchos que tinha na mesa de cabeceira no quarto que dividia com o pai pertenciam, na verdade, ao pai, que é caçador na Guiné. E uma arguida desconhecia que havia uma faca de mato em cima do guarda-fatos, na casa onde vivia. Faca que, disse, pertencia ao pai.

O oficial da PSP de Loures que testemunhou disse não ter dúvidas de que o encontrou no bairro, a 11 de Julho de 2008, o segundo dia de confrontos, foi um conflito "entre ciganos e negros”. Certo é que antes da sessão começar, alguns arguidos "ciganos e negros" se cumprimentaram com um aperto de mão.