2.6.14

“Os países precisam de recuperar a capacidade de se alimentarem”

João Manuel Rocha, in Público on-line

Olivier De Schutter, relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, lembra que a aposta na produtividade agrícola não resolveu o problema da fome e considera necessário “mudar de rumo”.

Os seis anos em que foi relator das Nações Unidas para o direito à alimentação confirmaram a Olivier De Schutter a ideia de que é “certamente possível” acabar com a fome. Se tivesse de escolher uma única medida para acabar com um problema que afecta mil milhões de pessoas optaria pela “generalização da protecção social”.

“Cometemos o erro de apostar demasiado no crescimento de ganhos de produtividade e não investimos o suficiente na protecção e no apoio aos pequenos agricultores”, disse ao PÚBLICO em Lisboa, onde há dias falou sobre “O direito à alimentação e à soberania alimentar”, a convite do CIDAC - Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral.

Belga, 45 anos, De Schutter repete expressões – “justiça social”, “protecção social” – que definem o seu posicionamento. Nesta entrevista fala de assuntos como as divergências que manteve durante o seu mandato com a OMC, Organização Mundial do Comércio. É preciso, diz, “os países recuperarem a capacidade de se alimentarem e a OMC desencoraja-o”. Sai preocupado com problemas como a pressão dos biocombustíveis sobre o mercado agrícola.

Mesmo com avanços tecnológicos há mais de 800 milhões de pessoas, 12% da população mundial, em situação de fome extrema. O que é preciso corrigir?
Os números da FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura], 842 milhões, estão subestimados. A FAO só considera quem tem fome 12 meses por ano, não a fome sazonal. Penso que o número real se situe nos mil milhões. O que é paradoxal é que nos últimos 50 anos a produtividade tenha aumentado 2,1% por ano e o número de pessoas com fome não tenha diminuído grande coisa. Eram 900 milhões em 1990, estamos em 842 milhões, pelo menos. Isso mostra que não basta aumentar o volume, é preciso tratar a fome como uma questão de justiça social, apoiar os pequenos agricultores que compõem o essencial do contingente de pessoas com fome, que não estão apetrechados para sobreviver na agricultura de hoje. Eles são os perdedores da concorrência entre agriculturas.

No relatório que fez neste final de mandato diz que os sistemas alimentares que herdámos do século XX falharam e considera necessário um novo paradigma na produção alimentar. A que princípios deve obedecer esse paradigma?
Temos sistemas formatados com a preocupação de aumentar a produção para fazer face a um crescimento demográfico muito grande e damo-nos conta de que os sistemas alimentares não prestaram atenção a outros aspectos importantes. Cometemos o erro de apostar demasiado no crescimento de ganhos de produtividade e não investimos o suficiente na protecção e no apoio aos pequenos agricultores. É uma questão que negligenciámos, como negligenciámos o lado ambiental. Não nos pusemos a questão de saber se a industrialização da agricultura era compatível com o respeito pelos ecossistemas e, em terceiro lugar, negligenciámos a questão da saúde, da diversidade alimentar. São três dimensões – justiça social, sustentabilidade ambiental e saúde que foram negligenciadas. É preciso mudar de rumo.

Há vontade política para apoiar uma produção sustentável com preocupações sociais e ambientais? Há força política para afrontar os interesses?
Quanto mais subimos do nível local para o da governação nacional, maiores são os bloqueios. As experiências mais prometedoras acontecem à escala local, onde os actores dominantes têm menos influência. Segunda coisa: mesmo quando há uma tomada de consciência ao nível governamental, as decisões estratégicas são do sector privado. São as empresas que investem, compram aos produtores, ligam o produtor ao consumidor, não o Governo. O sector privado toma decisões em função do lucro esperado e as questões sustentabilidade, desenvolvimento rural, igualdade na compensação dos actores não o preocupam muito. Não há ainda um alinhamento dos investimentos privados com as prioridades dos governos.

Veio falar sobre direito à alimentação e soberania alimentar, o que remete para o direito a decidir sobre o que cultivar, como comercializar, sobre os recursos. Isso é compatível uma agricultura industrial e uma economia globalizada?
A coexistência entre cadeias agro-alimentares transnacionais, industrializadas, e alternativas locais é possível na teoria. Na prática é difícil, se não tomarmos consciência da importância de apoiar os pequenos produtores, os laços entre produtores e consumidores locais, a cadeia de custos, o mercado agrícola, etc. Os governos devem dar-se conta da importância dessa coexistência. Não acredito que possamos eliminar os grandes actores mas creio que podemos organizar a coexistência entre a agricultura de pequena escala e o sistema dominante.