20.11.14

Mário fotografa a pobreza que a sociedade desconhece

Texto de Ana Maria Henriques, in Público on-line (P3)

“Roof” é o nome do projecto fotográfico de Mário Cruz e retrata a vida (e a pobreza) de quem não teve outra solução a não ser “encontrar um tecto que não era o seu”. "The New York Times” publicou o trabalho do jovem de 27 anos


Desde 2013 que Mário Cruz tem reparado em locais abandonados de Lisboa que, de alguma forma, apresentam sinais de “presença humana”. Um caminho de mato desbastado, uma janela com madeira no meio de muitas partidas, um pano estendido — “vários pequenos apontamentos” de vida, descreve o fotógrafo. Assim começou o projecto “Roof”, cujo propósito é “documentar a vida de pessoas que, por falta de apoios ou por terem ficado desempregadas, não tiveram outra solução a não ser encontrar um tecto que não era o seu”. São edifícios e fábricas abandonados, vilas desactivadas em Lisboa, tudo espaços ocupados por quem precisou de abrigo. “Roof” foi recentemente publicado no jornal norte-americano “ The New York Times”, uma oportunidade que pode dar mais visibilidade a um problema invisível na sociedade portuguesa.

O fotógrafo de 27 anos falou com mais de 30 pessoas, mas nem todas aceitaram integrar o projecto, sobretudo por não se tratar de um “trabalho sobre sem-abrigos que vivem nas ruas”. “Estas pessoas escondem-se da sociedade; há muitos amigos, familiares e colegas que não sabem da sua situação. Chegar ao pé de uma pessoa cujo maior segredo é aquele e dizer que o que eu mais quero é contar o seu segredo não é fácil, requer uma ligação de confiança que nem todos estão dispostos a dar.”

Em muitos casos, Mário teve de esperar dias para ver estas pessoas e conseguir falar com elas. Tentou “apanhar um espectro variado de situações”, explica ao P3: “não só pessoas sozinhas mas também acompanhadas, não só do sexo feminino mas também masculino, idosos, jovens, crianças, pessoas com e sem família”. Tudo para mostrar que este é um problema que atinge qualquer idade e situação familiar.

Ao fim de muitos meses a conquistar a confiança destes “inquilinos ilegais”, como lhes chama o “The New York Times”, o jovem fotógrafo surpreendeu-se com a “dignidade” de quem “não vive, sobrevive”. “Passado algum tempo seria de imaginar que não tivessem propriamente muita auto-estima e que a sua esperança por um dia melhor já tivesse sido deitada abaixo”, reflecte. O que encontrou, no entanto, foram indivíduos “que têm os seus cuidados, como nós temos: acordam, tratam da sua higiene da forma que podem, tentam ao máximo ganhar o seu dinheiro”. Arrumar carros, pedir nas ruas e procurar ajuda em instituições é o que muitas fazem — mas também há quem tenha um trabalho (precário) e simplesmente não consiga pagar um tecto, situações “nada fáceis de lidar”.

O projecto fotográfico de denúncia social não está terminado, ainda que Mário tenha decidido torná-lo público. A quantidade de pessoas que vivem nesta situação chocou o jovem de Lisboa. “Sabia que existiam — por isso é que quis documentar — mas não estava à espera de encontrar tantas, não tinha bem noção da dimensão”, confessa. “Se uns pediam para não mostrar a cara, outros não tinham vergonha” — as circunstâncias variam.

"A sociedade não sabem que elas existem"

A história de um senhor de 63 anos que “vive numa moradia muito grande abandonada, pertencente à Câmara Municipal de Lisboa”, perturbou Mário. “Sempre que quer entrar em casa tem que subir através de um escadote feito por um vizinho, uns quatro metros”, explica, e isto várias vezes ao dia. Quando o deixou entrar na casa — “com muitas marcas e uma estrutura muito debilitada” —, o jovem encontrou “um cenário triste”. “É uma pessoa muito inteligente, ironicamente arruma carros para um dos restaurantes mais prestigiados de Lisboa”, revela. “Não me importo com os insectos nem com os ratos nem com a lama. Simplesmente não quero é ter fome outra vez” foi uma das coisas que o senhor lhe disse e que o marcou.

Mário Cruz tenta, com um trabalho de meses desta dimensão, chamar a atenção. “Não vejo qualquer tipo de política ou iniciativa que vá ao encontro do problema destas pessoas, não sei como é que vão ultrapassar este drama que estão agora a viver”, constata o fotógrafo, vencedor do Prémio Fotojornalismo 2014 Estação Imagem Mora com outro trabalho de cariz social, “Cegueira recente”. “Estas pessoas nem sequer aparecem nas estatísticas dos sem-abrigo porque não vivem na rua, quem faz o levantamento não as inclui, a sociedade não sabe que elas existem.”

Com “Roof”, o jovem, que fotografa por Lisboa para fugir à rotina do dia-a-dia de uma agência, “não quer ganhar dinheiro”. Gostava de ver as suas imagens numa exposição e, quem sabe, num livro com retratos e depoimentos. “O que eu gostava é que não ficasse, apenas, numa página online.”