20.11.14

Uma criança maltratada só fala com um adulto capaz de ouvir a sua terrível história

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

“História de vida” é um método criado para tratar quem sofreu abusos e maus tratos. Está em expansão no Reino Unido, diz Richard Rose. E começou a ser utilizado em Portugal, com dez crianças retiradas às suas famílias no Alentejo.

O britânico Richard Rose é o principal promotor de uma terapia para ajudar crianças traumatizadas a desenvolverem relações afectivas – e a cura – fora do meio natural de vida, ou seja, da família onde nasceram. A metodologia, que criou no Reino Unido em 1997 e a que deu o nome Life Story (história de vida), envolve os cuidadores (nas instituições ou famílias de acolhimento) e transporta a criança no tempo, levando-a a entender o quadro familiar em que os seus avós e os seus pais cresceram antes de se tornarem abusadores ou negligentes.

A técnica “em expansão” no Reino Unido, diz, está a ser desenvolvida na Austrália e experimentada em Portugal onde o especialista supervisiona uma equipa que acompanha, há dois meses, dez crianças a viver em instituições ou acolhidas na família alargada, no Alentejo.

O especialista e autor de dois livros – entre os quais Life Story Therapy with Traumatized Children (2012) – é também professor associado na área de Serviço Social e Política Social na La Trobe University em Melbourne, na Austrália, onde está igualmente ligado ao Berry Street Childhood Institute e trabalha nos Serviços de Famílias de Adopção em Belfast, na Irlanda do Norte. E dirige os Serviços de Intervenção junto de Crianças Traumatizadas em Inglaterra e País de Gales, onde aplica, juntamente com outros profissionais, esse método junto de cerca de 200 crianças retiradas à família – uma pequena minoria do total de 66.600 crianças retiradas aos pais e a viver em instituições ou (a grande parte) famílias de acolhimento, só na Inglaterra e País de Gales.

Richard Rose falou ao PÚBLICO em Lisboa onde esteve nesta segunda-feira a apresentar uma conferência no encontro Os Direitos da Criança no Acolhimento Institucional, organizado pelo programa Crianças e Jovens em Risco da Fundação Calouste Gulbenkian.

Em que consiste o método “história de vida”?
O objectivo é construir uma boa compreensão da experiência de vida da criança, antes e no momento do seu nascimento e desde o nascimento até ao momento actual. O que as crianças e os jovens vão querer saber é se eu, no meu contacto com eles, sou autêntico ou se estou a usar as mesmas palavras que ouviram durante anos de outros profissionais, como “eu percebo, tudo vai correr bem, tens que ultrapassar [os teus traumas]”. O que faço é falar com eles, sobre a sua vida e a sua família, com conhecimento real e não apenas a partir do que li num relatório. Isso faz muita diferença. As crianças percebem que estive na casa dos pais, dos avós ou de outros familiares. Isso permite desenvolver um verdadeiro diálogo com elas e dá-lhes um sentimento de autenticidade e de pertença.

Esse sentimento surge ao fim de quanto tempo?
Depois da primeira fase de recolha de informação sobre a criança e a família, a intervenção directa dura nove meses. Durante esse tempo, depois de falarmos da história da criança até ao seu nascimento e depois dele, chegamos ao momento presente e falamos do que a criança gostaria que fosse o seu futuro. E vemos crianças, que estavam muitas vezes presas ao passado, a serem capazes, de um momento para o outro, de perceber que estão no presente e que podem pensar no seu futuro.

É uma viagem no tempo que oferece à criança uma percepção mais positiva de si mesma?
Sim, e um método que permite o fortalecimento dos laços entre a criança e o cuidador na instituição ou na família de acolhimento, porque fizeram essa viagem juntos. A partilha de compreensão e de experiências, durante as 18 sessões ao longo dos nove meses da intervenção, cria essa oportunidade de vinculação entre os dois. Quem acolhe a criança pode ver para lá do seu mau comportamento, para lá dos seus problemas, pode ver uma pessoa que precisa de ser protegida. A ideia é que a família de acolhimento se transforme numa âncora e que as crianças em situação de acolhimento passem a ter uma pessoa que as conhece bem, que as compreende, que gosta delas. Antigamente, trabalhávamos com a criança. Mas se não trabalharmos com o acolhimento, como podemos esperar que haja avanços?

O objectivo é pois aproximar a criança da família de acolhimento e ao mesmo tempo levá-la a compreender a família de origem?
Sim, a criança precisa de saber o que aconteceu com os pais, para perceber os maus tratos, os abusos sexuais, a negligência que sofreu. Muitas vezes os próprios pais foram maltratados ou abusados em criança. O seu entendimento do que é cuidar de uma criança está alterado em função da sua própria experiência. Nessa altura, junto da criança, a abordagem deve ser não a de diabolizar o comportamento que ela própria está susceptível de desenvolver, influenciada pelo comportamento que os pais tiveram com ela, mas perceber a origem desse comportamento. Falamos das suas experiências, das terríveis recordações do passado e da dor. Os adultos não gostam de ouvir falar desse tipo de dor, dos maus tratos, dos abusos sexuais. Mas é isso que está na cabeça das crianças. É disso que elas vão falar.