29.12.14

Há comida que só não vai para o lixo porque é doada

Ana Rute Silva, in Público on-line

Das mercearias de bairro, que vendem menos e desperdiçam mais, às grandes superfícies, que oferecem prateleiras abundantes, o desperdício também é o rosto da sociedade de consumo.

Na mercearia Arca de Noé, amanhã haverá feijão-verde, pêras e bananas que foram comprados agora mesmo, ao início da noite, no Mercado Abastecedor de Lisboa (MARL). Terça-feira não é o dia forte, quinta será melhor, mas nos gigantes pavilhões há sempre fruta e legumes encaixotados para vender aos comerciantes. Circulam empilhadoras e bicicletas, acumulam-se caixas de madeira e cartão. Horácio Carvalho tem a pequena loja na Póvoa de Santo Adrião há 50 anos e é aqui que procura diariamente os seus produtos frescos. Lá no bairro todos o conhecem. E ele conhece toda a gente.

“Hoje não levo laranjas porque ainda tenho lá de ontem”, conta, já depois de ter pago a encomenda a Ana Baptista, que o atende através de um cubículo, na box da António Manuel Baptista Limitada.

O desperdício é uma realidade na sua pequena loja, “ainda mais nesta altura do campeonato” — refere-se à crise e aos clientes que pedem cada vez mais fiado e contam os tostões antes de pagar. “Há sempre coisas que apodrecem, mas agora as pessoas estão a comprar menos. Eu também estou a comprar menos. O que sobra ou vai para o lixo ou aproveita-se em casa”, conta. Fruta tocada e legumes murchos são retirados dos expositores e Horário Carvalho não deixa os clientes mexer muito nos produtos: cada toque prejudica a qualidade e o aspecto, factores essenciais para a escolha no acto de compra. “Não deixo, mas quem é que não gosta de apalpar? Os olhos às vezes não se contentam e têm de lá ir com as mãos”, ironiza.

Ana Baptista também lamenta as vendas “bastante fracas”. “Há desperdício e agora ainda mais. Os abastecedores estão a comprar menos. As pessoas só querem bom e barato e antes vendia-se tudo. O bom, o caro, o menos bom e o barato”, conta.

Fora dos pavilhões do MARL, no chão junto aos caixotes do lixo, há restos de alface, laranjas desfeitas misturadas com caixas de cartão e sacos de rede. “São toneladas e toneladas de lixo neste mercado”, conta Paulo Silva Martins, 48 anos, dono da Frutaliana, que ocupa cinco espaços no mercado abastecedor. Mas no Verão é pior. “A fruta estraga-se mais. No Inverno, as temperaturas mais baixas ajudam a conservar melhor os alimentos e a própria fruta é mais resistente. Os pêssegos, por exemplo, às vezes estão bons para comer aqui, mas ninguém os compra porque chegam à loja demasiado maduros.” É uma corrida contra o tempo: a fruta tem de estar verde quando é comprada pelos comerciantes. Já nas lojas tem de estar quase pronta para ser consumida, mas capaz de aguentar vários dias em casa.

No ano passado, no MARL, o Banco Alimentar de Lisboa conseguiu abastecer-se com 1098 toneladas de fruta e legumes que os vendedores iriam deitar fora enric vives-rubio

Em Portugal, 29% do desperdício alimentar é feito na fase de comercialização devido a más condições de armazenagem, falta de refrigeração, falhas na gestão do stock ou nos produtos que não são vendidos. São 298 mil toneladas, incluídos nos mais de um milhão de toneladas que os portugueses deitam fora, desde a produção agrícola até ao prato, refere o Projecto de Estudo e Reflexão sobre Desperdício Alimentar (PERDA), elaborado pelo Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa em 2012 — e até agora o único que analisou a realidade nacional. Com o mercado concentrado nos grandes operadores de distribuição — 85,8% de quota, enquanto o comércio tradicional tem 14,2%, de acordo com dados da empresa de estudos de mercado Nielsen do primeiro semestre — a maior fatia de desperdício ocorre, por isso, nos supermercados, “hipers” e discounts, ou seja, fora do circuito das pequenas mercearias como a Arca de Noé, de Horácio Carvalho.

Hokuma Karimova e Piotr Lubiewa Wielezynski, fundadores da organização não governamental (ONG) Say No To Food Waste, apontam mesmo as grandes superfícies como a “causa para o aumento do consumo na sociedade actual”, influenciando o “comportamento do consumidor”, “tentando-o através de promoções” e “aumentando as porções de comida”. Na tese de mestrado que, juntos, dedicaram ao tema e que pode ser consultada no site da ONG escrevem que os supermercados “são responsáveis pela forma como as pessoas procuram e escolhem alimentos”.

O Continente e o Pingo Doce, as duas maiores cadeias de distribuição do país, não divulgam o nível efectivo de desperdício que acontece todos os dias nas quase 600 lojas que operam (380 Pingo Doce e 209 Continente). Mas tem-se um pequeno vislumbre da dimensão do problema quando se analisa o valor das doações de alimentos a instituições de cariz social que ambos fazem regularmente e que, de outra forma, teriam o lixo como destino quase certo. Em conjunto, em 2013, foram oferecidos 16 milhões de euros de comida em bom estado, que cumpre as normas de segurança alimentar mas que por vários motivos não pode ser exposta nas lojas (ou porque se aproxima do fim do prazo de validade ou por ter a embalagem danificada, por exemplo). Ao longo do ano passado, no Pingo Doce foram doados alimentos no valor de 11 milhões de euros; no Continente cinco milhões de euros. Já nos primeiros nove meses de 2014, a cadeia da Sonae (dona do PÚBLICO) forneceu comida e outros bens materiais a 576 instituições, no valor de mais de três milhões de euros.

No Reino Unido, o assunto tem estado na ordem do dia desde que a britânica Tesco divulgou pela primeira vez, e num passo inédito, o nível de desperdício da empresa, a maior do sector de distribuição daquele país. Nos primeiros seis meses de 2013, as lojas e centros de distribuição desperdiçaram 28.500 toneladas de comida, o equivalente a 0,87% do volume de produtos vendidos no mesmo período. É na padaria que se deita mais comida fora: 41% do total. Seguem-se os frescos (21%) e os lacticínios (8%). A Tesco analisou 25 produtos específicos e concluiu que nas saladas pré-lavadas, embaladas e prontas a consumir, 68% do total da produção é deitada fora, quer nas lojas, quer em casa dos clientes. Na padaria, a percentagem chega aos 47%. Com os números na mão, a empresa lançou o repto à concorrência para que também divulgue números e definiu novas regras como, por exemplo, não voltar a oferecer promoções “leve 2 pague 1” nas saladas de embalagens maiores. Na padaria, decidiu não mostrar tanto pão nas suas montras e apostou num sistema informático para prever melhor as encomendas e o planeamento diário.

Com os produtos recolhidos junto de supermercados como o Pingo Doce, o Centro de Apoio ao Sem-Abrigo confecciona refeições ou doa em cabazes à população sem abrigo enric vives-rubio

Há outros sinais de que o combate ao desperdício alimentar, típico das sociedades industrializadas, está a chegar às empresas de distribuição. No final do ano passado, a alemã Edeka começou a vender legumes e frutas disformes, que não obedecem às normas de comercialização e são, por isso, rejeitados pelos supermercados. Também na Suíça, a Coop lançou a “Unique”, gama de produtos feios e 60% mais baratos. Em Portugal, o Intermarché replicou a campanha que lançou em França e colocou à venda no seu supermercado de Vialonga fruta e legumes com formas pouco habituais. A operação-piloto só durou quatro dias e, no total, foram vendidas cerca de 4,2 toneladas de fruta e legumes feios com 30% de desconto.

Ana Isabel Trigo de Morais, directora-geral da Associação Portuguesa das Empresas de Distribuição (APED), garante que o problema do desperdício “está no topo das preocupações do sector”. “Há muito que tem vindo a tomar medidas, em dois planos. No plano interno, na organização, evitando que produtos perecíveis percam validade antes de chegar a casa do consumidor. Num segundo plano, na sensibilização do cliente para que adopte comportamentos e práticas responsáveis”, descreve, sublinhando que 42% do desperdício é feito em casa.

Nas lojas, há algumas medidas já tomadas. Os produtos com a data de validade mais curta são geralmente colocados à frente. A venda a granel também reduz o desperdício, tal como as embalagens de menor dimensão, ajustadas ao perfil do consumidor. Contudo, o ambiente nos supermercados é, geralmente, de abundância, nomeadamente nas bancas de legumes e fruta, sempre recheadas e, muitas vezes, pulverizadas com água para que os artigos mantenham o aspecto fresco, como se tivessem sido acabados de colher no campo. Os alimentos estão expostos debaixo de luzes fortes, num quadro cénico que atrai os clientes mas que acelera o seu amadurecimento. Algumas organizações que combatem o desperdício sugerem, por isso, o uso de espelhos para dar a ilusão de quantidade e garantir melhores condições de conservação.

A forma como o consumidor escolhe também aumenta as perdas. À Revista 2, uma fonte do sector deu um exemplo: para comprar cerca de seis maçãs, os portugueses tocam em média em 17. São centenas de pessoas a escolher diariamente fruta e legumes apertando, cheirando, manuseando sem grandes preocupações. No final do dia, as maçãs ganham manchas castanhas, cortes, lesões, tornando-se um produto pouco apetecível para vender.

Outra fonte de desperdício são as datas de validade. Poucos clientes sabem a diferença entre a expressão “consumir até” e “consumir preferencialmente até”. No primeiro caso, comer depois de ultrapassado o prazo é um risco para a saúde; no segundo há alterações nas características dos produtos, mas não há problema se forem ingeridos. Helena Silva, supervisora das lojas do Pingo Doce na zona Oeste de Lisboa, conta que no caso dos iogurtes, quando faltam cinco dias para o fim do prazo de validade, fazem-se promoções do género “leve 2 pague 1”, para estimular a venda. Quando faltam dois dias, o produto é encaminhado para as doações que a cadeia do grupo Jerónimo Martins faz regularmente a várias instituições. Os ovos são retirados da prateleira sete dias antes do prazo de validade. Latas amolgadas também “não se podem vender, por lei”, conta Helena Silva. São exigências de segurança alimentar.

No Pingo Doce, o que sobra do talho e da peixaria é encaminhado na totalidade para empresas que fazem o tratamento destes resíduos, geralmente vendidos à indústria da alimentação animal. Tudo o resto é doado ou deitado fora. “Para o lixo, vai fruta podre, todos os produtos que sejam sujeitos a contaminação cruzada [transferência de micróbios patogénicos de um alimento contaminado, normalmente cru, para outro alimento], que estejam fora do prazo de validade ou que tenham sido expostos a temperaturas desadequadas que comprometam a sua segurança alimentar. Não temos valores do que vai para o lixo, mas é residual”, garante Helena Silva. As doações diárias em todo o país têm sido um canal privilegiado para evitar o desperdício e no último ano aumentaram os pedidos das organizações sociais. De tal forma que há escalas definidas dos dias e horas de recolha.

Henrique Doze, funcionário do CASA (Centro de Apoio ao Sem-Abrigo), chega por volta das 16h30 ao Pingo Doce de Alfragide para recolher as caixas de cartão que, até há pouco, estavam conservadas no armazém frigorífico da secção de frescos. Levará cenouras partidas e já escuras, bananas pintalgadas, embalagens de bolachas rasgadas mas com o produto protegido por bolsas individuais. “As cenouras já não são vendidas assim, nem as bananas”, garante Sandra Cunha, responsável pela zona de frescos do supermercado. Ao longo do dia, os trabalhadores vão retirando as peças danificadas, colocam-nas em sacos que são, depois, armazenados no frio.

Cenouras já escurecidas e que não podem estar nas prateleiras dos supermercados seguem para instituições de cariz social enric vives-rubio

Para o CASA, também vão seguir refeições já prontas de rancho, que a cadeia de supermercados promoveu com preço especial no último fim-de-semana. “Foi uma aposta arrojada e sobrou comida”, diz Helena Silva. Será ainda doado um chouriço com o prazo de validade até 21 de Dezembro, mas cuja embalagem está amachucada e pouco agradável aos olhos de um consumidor cada vez mais exigente. Tal como iogurtes gregos ou um pacote de leite com chocolate amarrotado.

“Com estes produtos, confeccionamos refeições ou doamos em cabazes à população sem abrigo. Ajudamos 160 agregados familiares em Lisboa e 6700 pessoas a nível nacional. Além do Pingo Doce, também recebemos doações de alimentos do El Corte Inglés e há restaurantes que nos direccionam comida. Outros cozinham especialmente para nós”, conta Nuno Jardim, presidente da direcção do CASA. Só no Pingo Doce, por ano, a comida doada vale 600 mil euros, a preço de custo. “No total, facilmente as doações devem ultrapassar um milhão de euros. Comida que iria para o lixo e que é aproveitada”, continua. A instituição faz uma segunda triagem e acaba por deitar fora os alimentos que, entretanto, já expiraram prazos de validade ou que apodreceram. “São excepções, aproveitamos praticamente tudo”, garante Nuno Jardim.

No ano passado, no MARL, o Banco Alimentar de Lisboa conseguiu abastecer-se com 1098 toneladas de fruta e legumes que os vendedores iriam deitar fora. Até finais de Novembro deste ano, as quantidades doadas por 221 fornecedores instalados no mercado que abastece a capital já ultrapassavam as de 2013: 1574 toneladas. A instituição sediada em Alcântara fornece comida a cerca de 70 instituições sociais todos os dias e Maria Antónia do Rosário, responsável pela comissão de abastecimento, adianta que perto de 70% do que é doado no MARL corresponde a fruta. Os alimentos frescos chegam todos os dias ao espaço que a organização ocupa desde 2001. E é lá que encontramos Vítor Alves a descarregar dezenas de caixas pretas de plástico cheias de brócolos. “Muitas vezes só quando chegam é que os fornecedores sabem o que vão mesmo vender e hoje a previsão estava errada. Por isso é que vieram cá deixar estes brócolos”, explica o funcionário do BA. Maria Antónia do Rosário, que na reforma dedica o seu tempo ao voluntariado activo, diz que o desperdício a choca, “claro”. Mas o que é ali depositado não vai para o lixo. Alimenta famílias. “Parece muito, mas não chega. Há dias em que há muito pouco para dar às instituições. As campanhas agrícolas por vezes correm mal e não é possível doar tanto”, lamenta.

No MARL, as caixas de brócolos que chegaram de um produtor da zona Oeste ficam arrumadas ao lado de outras cheias de mangas maduras e bananas. Às 6h30, um camião de transporte levará a comida para Alcântara. E o cenário repete-se ao final do dia. Horácio Carvalho há-de regressar ao gigante mercado abastecedor para comprar o que lhe falta na sua Arca de Noé. E os vendedores do MARL farão figas para conseguir vender o mais possível para que sobre pouco ou nada.