29.12.14

Um pedido

Por Artur Pereira, in iOnline

Senhor, o mais vergonhoso, o mais intolerável, são as crianças com fome. São dezenas de milhares as que só comem uma refeição por dia... São os sem voz e sem vez

Não sei se faz sentido esta minha expectativa e se serei merecedor da tua atenção, mas não fará mal tentar entender se estou só com as minhas circunstancias ou se afinal existes, e na tua infinita tolerância podes escutar o meu desabafo.

Na realidade, se não achares demasiado atrevimento, junto ao desabafo um pedido. Os teus seguidores e crentes avisaram-me que não esperasse respostas mas sim revelações.

Que não espere uma voz que do altíssimo atravesse o espaço e me desperte para a solução, mas sim a revelação que se manifestará na procura que eu terei que fazer.

Nunca te procurei, nem nos momentos mais duros, em que tomei por opção nem te considerar uma das vertentes da equação. Mas também nunca usei o teu nome em vão.

Quando entrei nas tuas casas, foi sempre para admirar a genial obra criadora dos homens, e não para me deixar arrebatar pela riqueza dos templos erguidos em teu nome.

Também não fiz distinção na dimensão ou direcção da fé de um amigo para com isso o renegar ou negar-lhe ajuda.

Tal como a luta é para mim um acto de redenção, compreendo que para outros a fé seja um bálsamo. Os dois procuramos luz. Talvez a possamos encontrar juntos.

Entendo que aos olhos de muitos dos teus fiéis e sacerdotes sou um pecador. Um oportunista que nunca cumpriu com nenhum acto da liturgia, nem se ajoelhou perante a tua imagem.

Mas, Senhor, as coisas estão muito difíceis e precisamos de ajuda.

Como sabes, no mundo 85 multimilionários dispõem de tantos recursos como 3,5 mil milhões das pessoas mais pobres.

Como sabes, as 100 maiores fortunas de Portugal valem 32 mil milhões de euros, o que corresponde a 20% da riqueza nacional.

Somos mais de 2 milhões de homens e mulheres desempregados. Cerca de 1,9 milhões de portugueses vivem já na pobreza, número que subiria para cerca de 5 milhões, se não recebessem alguma prestação social. Isto significa que quase 50 por cento do total da população vive na pobreza.

Existem 3,7 milhões de portugueses a viver com menos de 414 euros mês, 41% dos portugueses vivem em privação, dificuldade em pagar a renda de casa, e manter a casa aquecida ou fazer uma refeição.

Mas, Senhor, o mais vergonhoso, o mais intolerável, são as crianças com fome. São já dezenas de milhares as que só comem a refeição que lhes é dada na escola, com todas as consequências no aproveitamento e abandono escolar, na saúde e na expectativa de um futuro de exclusão. São os sem voz e os sem vez.

Os seus gemidos pelas noites, os seus humildes sonhos destruídos, as suas lágrimas choradas não deveriam ser lamentos de anjos para ti?

Estou confuso, Senhor. Não deverias ser um clarão na sua amargura? Não expulsaste os vendilhões do templo acusando os cambistas de ladrões?

Anunciaste que os que tinham fome de justiça seriam saciados através de ti.

Dizem-me que és a libertação dos que sofrem, que vens para perturbar os ricos, os poderosos e os cínicos pela responsabilidade que têm por acção e omissão na violência e nas lágrimas de desesperança que mancham esta terra nossa.

Então não nos queiras mansos. Enche o coração dos que clamam por justiça e não deixes que os teus filhos morram sós, resignados, abandonados e convencidos de que nada podem fazer.

Dá-nos sabedoria e coragem, liberta-nos do medo. Queremos a insurreição não a paz que nos oferecem os que nos oprimem.

Queremos lutar de pé como homens livres levantados do chão vindos de todos os lados em multidão a encher as ruas e avenidas do meu país na aventura de construir uma vida digna e uma sociedade melhor.

Senhor, peço-te, junta-te a nós e transforma a nossa revolta num furacão de esperança. Sê o nosso Deus libertador.