28.1.15

"Como é que isto está a acontecer outra vez", perguntam sobreviventes do Holocausto

Rita Siza, in Públio on-line

Cerimónia assinala o 70.º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. “Pensávamos que o ódio aos judeus tinha sido erradicado mas em vez de 2015 mais parece 1933", lamenta presidente do Congresso Mundial Judaico.

Com idades entre os 80 e os 90 anos, os últimos sobreviventes de Auschwitz viajaram até ao Sul da Polónia para assinalar o 70º aniversário da libertação do que foi o maior campo de concentração e extermínio nazi, conscientes de que, provavelmente, seria a sua derradeira homenagem às mais de 5,5 milhões de judeus vítimas do Holocausto.

“Fizemos um esforço especial para os termos aqui hoje”, admitiu o presidente do Congresso Mundial Judaico, Ronald Lauder. “Sabemos que esta deve ser a última vez que teremos uma presença tão proeminente de sobreviventes. Muitos já não vão estar connosco quando marcarmos o 75º aniversário”, observou ao diário britânico The Guardian.

Mas mais do que recordar o passado, o que estes octogenários pretendem é reflectir sobre as lições da História, num momento em que ressurgem ataques anti-semitas e se verifica expansão territorial assente em conflitos étnicos e sectários na Europa. Como é possível que, ali ao lado, os judeus sejam abatidos em ataques terroristas em França, ou que as fronteiras de um país sejam ultrapassadas e regiões sejam sumariamente anexadas, como na Ucrânia, questionam-se – será que não se aprendeu nada?

“Nós, sobreviventes, jamais esqueceremos o que se passou aqui”, declarou Roman Kent, um dos antigos prisioneiros e membro do Conselho Internacional de Auschwitz. “Mas lembrar não é o suficiente. Palavras são importantes mas acções são cruciais”, declarou, defendendo como “obrigação dos sobreviventes mas também dos líderes políticos” educar as gerações para o respeito e a tolerância, “ensinar que o ódio nunca está certo e o amor nunca está errado”.

Numa longa intervenção, a voz de Roman Kent, de 86 anos, só tremeu uma vez, quando disse que “não queremos que o nosso passado seja o futuro dos nossos filhos”. “Não queremos que o nosso passado seja o futuro dos nossos filhos”, repetiu, em lágrimas, pelo que a promoção do “pluralismo, da tolerância e dos direitos humanos tem de incluir a oposição ao anti-semitismo e ao racismo. Essa devia ser a norma e não a excepção”.

Na mesma linha, Ronald Lauder, um descendente de judeus húngaros nascido em Nova Iorque em 1944, evocou a indiferença, que leva o ódio a insinuar-se nas sociedades até ser tarde demais. “Queria fazer outro discurso aqui , mas depois do que aconteceu recentemente em Paris, não posso deixar de falar. Os judeus estão novamente a ser atacados na Europa”, lamentou. “Pensávamos que o ódio aos judeus tinha sido erradicado mas agora acordamos e em vez de 2015 mais parece 1933. Como é que isto está a acontecer outra vez? E porquê?”

Uma realidade insuportável
As mesmas dúvidas e inquietações que afligem os judeus e os sobreviventes do Holocausto foram mencionadas ao longo do dia por alguns dos chefes de Estado europeus presentes na cerimónia em Auschwitz. Antes de viajar para a Polónia, o Presidente de França, François Hollande, homenageou os cerca de 75 mil judeus franceses deportados pelo regime colaboracionista de Vichy, numa cerimónia no Memorial do Holocausto de Paris. O anti-semitismo e o racismo serão, a partir de agora, “agravantes” a ter em conta na aplicação do código penal gaulês, anunciou.

Hollande descreveu o aumento dos actos contra judeus, que duplicaram em França em 2014, como uma “realidade insuportável”, e reconheceu que o “flagelo” do anti-semitismo está a levar muitos membros da comunidade a “interrogar-se sobre a sua presença em França”. Mas num apelo vigoroso, três semanas depois dos atentados terroristas que atingiram o jornal satírico Charlie Hebdo e um supermercado kosher, o Presidente garantiu a todos os franceses de confissão judaica que não têm de fugir: “A França é a vossa pátria. O vosso lugar é aqui. O nosso país não seria o mesmo se tivesse de viver sem vós”.

Também a chanceler alemã Angela Merkel lamentou que, 70 anos depois da libertação de Auschwitz, continue a haver quem seja “ameaçado, atacado e agredido, na Alemanha, por dizer que é judeu ou por tomar partido por Israel". "É vergonhoso”, considerou. “Temos de nos opor ao anti-semitismo e todas as formas de racismo, não podemos admitir palavras racistas contra os judeus ou contra as pessoas que encontraram na Alemanha um local de abrigo da guerra e da perseguição”.

Reconhecendo que o seu país tem uma “responsabilidade eterna” pelas atrocidades cometidas pelo regime nazi em Auschwitz e muitos outros lugares, Merkel sublinhou que a ameaça do mal continua a pairar hoje em dia, sob a forma do terrorismo islamista e do anti-semitismo. Mas “cada um deve poder viver em segurança e liberdade, independentemente da sua religião ou da sua origem”, contrapôs. “Muçulmanos, judeus ou cristãos, crentes ou ateus, não nos vamos deixar dividir”, declarou.

Onda de ódio

Tal como Merkel, Ronald Lauder fez questão de frisar durante o seu discurso em nome dos “Pilares da Memória”, que a “onda de ódio que está a varrer o mundo” não atinge só os judeus. “Os cristãos estão a ser massacrados em África. As mulheres e crianças são atacadas por ir à escola no Afeganistão e Paquistão. Os jornalistas são decapitados no Médio Oriente”, enumerou. “Todos os países deviam criminalizar o ódio. E qualquer país que defende a aniquilação de outros países devia ser expulso da comunidade das nações. Se não agirmos depressa, a tragédia deste lugar terrível voltará a ensombrar o mundo. Não deixem que isso volte a acontecer”, pediu.

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, que se tornou uma presença incómoda por causa das acções beligerantes de Moscovo na vizinha Ucrânia, não foi oficialmente convidado para a cerimónia em Auschwitz, mas nem por isso deixou de prestar tributo às vítimas do Holocausto e de elogiar os esforços do Exército soviético na Segunda Guerra Mundial.

Numa sessão no museu do Judaísmo de Moscovo, Vladimir Putin condenou as tentativas de “silenciar, distorcer ou falsificar os acontecimentos para reescrever a História” como “inaceitáveis” e “imorais”, e ofereceu a sua própria interpretação para esse comportamento: “É o desejo de esconder a vergonha da cobardia, hipocrisia, traição, e da cumplicidade tácita, passiva ou activa, com os nazis”.

O Presidente russo nem precisou de referir explicitamente os alegados culpados dessas tentativas, uma vez que há vários anos vem acusando as autoridades ucranianas de reclamarem um falso protagonismo na libertação de Auschwitz. A discórdia aprofundou-se depois de declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros polaco que atribuiu a soldados ucranianos a responsabilidade pela libertação de Auschwitz: perante essas palavras, o embaixador russo nas Nações Unidas clarificou que a 322ª divisão de artilharia do Exército soviético, que entrou no campo em 21945, era designada como a primeira frente ucraniana por ter “libertado a Ucrânia dos nazis antes de chegar à Polónia”.