20.1.15

O valor da vida humana

Por Fernando Nobre, in iOnline

Poderia continuar com estas estatísticas macabras e estes números enfadonhos, mas creio que a amostra revela bem à nossa sociedade como é relativo o valor da vida humana

Escrever sobre o valor da vida humana é mergulhar num abismo de absoluta relatividade. Na verdade umas vidas "valem" muito enquanto outras não valem absolutamente nada, como temos observado ad nauseum. Senão vejamos alguns factos recentes e indesmentíveis:

1. Alguém ouviu sequer falar do mais brutal genocídio ocorrido desde 1997 até hoje no Zaire/RDC, onde na floresta equatorial e na região de Goma foram mortos entre uma indiferença total entre 8 e 10 milhões de seres humanos? Mais, alguém sabe que, por tentar investigar essa tremenda tragédia oculta, a senhora Mary Robinson não foi eleita para um segundo mandato como alta comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas?

2. Sabemos em detalhe quantos militares ocidentais morreram no Afeganistão e no Iraque. Alguém sabe quantas centenas de milhares de afegãos, iraquianos e sírios já morreram por causa das acções e bombas desvairadas em nome "da democracia do desenvolvimento e da luta antiterrorista"?

3. Sabemos exactamente quantos cidadãos e soldados israelitas já morreram na tragédia da Palestina desde 1947. Alguém sabe quantas dezenas de milhares de vítimas mortais palestinianas houve e quantas centenas de milhares vivem em campos, há várias gerações, há mais de 60 anos?

4. Sabemos quantas vítimas mortais houve recentemente nos atentados terroristas e confrontos que ocorreram em Paris e em Verviers (Bélgica). Alguém sabe, e se comoveu, com as vítimas do movimento terrorista Boko Haram na Nigéria? E as chacinas na República Centro-Africana?

5. Alguém sabe quantas dezenas de milhares de imigrantes, fugindo à miséria e aos conflitos, morreram nos últimos cinco anos nas travessias do Sara e do Mediterrâneo?

Poderia continuar com estas estatísticas macabras e estes números enfadonhos, mas creio que esta amostra revela bem à nossa sociedade como relativo o valor da vida humana, pese embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos ter sido escrita há mais de 65 anos, e ratificada por todos os governos.

A verdade nua e crua é que nem todos os "seres humanos" têm a mesma importância, o mesmo valor: uns poucos são "seres humanos", inúmeros outros são baratas, piolhos e anónimos que não contam.

O que é particularmente confrangedor e aterrador para mim, médico que há mais de 35 anos percorre o mundo em acções humanitárias concretas, é que estamos em pleno século xxi, já talvez inexoravelmente a caminho da terceira guerra mundial, por indiferença, incúria, falta de sensibilidade, incompetência ou pura malvadez e perversão de interesses planeados.

As lideranças globais financeiras, económicas e políticas, maniqueístas e psiquiatricamente gravemente enfermas de ganância, indiferença e intolerância, já soltaram os quatro cavaleiros do apocalipse sobre a humanidade e, ipso facto , sobre algo que deveria ser absoluta e igualmente sagrado entre todos nós: a vida!

Até agora calcula-se, por baixo, que os 100 maiores genocídios perpetrados na história da humanidade desde há uns 2500 anos já provocaram mais de 800 milhões de mortos, tendo o recorde absoluto sido atingido na Segunda Guerra Mundial, com cerca de 60 milhões de mortos. E neste resumo de genocídios não contam os que provocaram menos de 150 mil mortos!!

Para mim, ser humano, humanista, viajante, pai, médico e professor de Medicina Humanitária, o que me deixa particularmente estupefacto e angustiado é que a vida não tem, repito, não tem o mesmo valor sagrado e o mesmo significado que deveria ter derivado da sua intrínseca sacralidade consoante o sítio onde nascemos. E isso é inaceitável.

Ou a sociedade civil global e solidária se levanta e grita bem alto que BASTA, que somos todos irmãos, ou já não haverá muralha que impeça que os doentes que nos "lideram" globalmente ponham em marcha as suas máquinas trituradoras infernais e maléficas, que cuspirão os descartáveis, os outros, sempre vilões, as baratas, os dejectos para as fossas comuns e para o esquecimento, enquanto erguerão mausoléus, arcos do triunfo e panteões exclusivamente para os seus, sempre heróis, únicas vidas que a seus olhos têm valor... se tiverem! Não, para já as vidas não têm manifestamente o mesmo valor!

No entanto, eu, cidadão e médico, sei que todas, todas, as vidas são únicas e insubstituíveis!

Nós, cidadãos, todos nós, talvez ainda possamos reagir a tempo, impondo a todos:

- Sacralidade e igualdade do valor da vida para todos!

- Respeito e conhecimento mútuo entre todas as raças, todas as nações, todos os credos. A haver Deus, só há um e é para todos nós: judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, hinduístas, taoistas, animistas, ateus...

- Sensibilidade, tolerância e fim da indiferença como doença altamente mortífera que é.

Se não for por humanismo, entendam-no pelo menos, em nome da inteligência e da sobrevivência da nossa espécie!