24.2.15

Catarina de Albuquerque."Se não mudarmos o mundo, andamos cá a fazer o quê?"

Por Margarida Vaqueiro Lopes, in iOnline

A primeira relatora especial da ONU para a Água e Saneamento é portuguesa e agora vai liderar a iniciativa Water for All. Sabe quem é?

Aos 33 anos estava a presidir a uma iniciativa das Nações Unidas em Genebra, a convite do governo português. Em 2008, por sugestão dos governos alemão e espanhol, torna-se a primeira relatora especial da ONU para a Água e Saneamento, cargo que ocupou até Dezembro do ano passado, quando terminou o segundo mandato. Catarina de Albuquerque assumiu entretanto a direcção-executiva da iniciativa mundial da ONU Sanitation and Water for All. Aos 43 anos, é uma das portuguesas que fazem história no mundo, mas que em Portugal muitos não conhecem.

Como é que, tão nova, conseguiu liderar tantas iniciativas na ONU?

Eu sou licenciada em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa e detestei aquilo tudo. Depois fui fazer um mestrado para a Suíça, para Genebra, no Instituto de Altos Estudos Internacionais, na área de Direito Internacional. E em paralelo fui fazer um estágio na ONU com a Graça Machel que, na altura, tinha sido convidada para fazer um estudo sobre os efeitos dos conflitos armados nas crianças. Lembro-me de levar coisas para casa para ler e de me fartar de chorar a ler os relatos sobre as crianças, aquelas coisas horríveis. Foi o meu primeiro pezinho na ONU. E, com o pezinho lá dentro, percebi: "É isto que eu quero fazer."

Mas voltou para Portugal?

Fui trabalhar para a PGR, para o Gabinete de Direito Comparado, que faz uma espécie de assessoria jurídica ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) em temas de direitos humanos. Comecei a ser chamada pelo MNE para representar Portugal em reuniões da Comissão de Direitos Humanos e da Assembleia-Geral da ONU e, depois, de negociação de tratados internacionais, etc. Portanto, comecei a representar Portugal na área de direitos humanos. Em 2003, o governo perguntou-me se eu não queria ser a candidata portuguesa a presidir às negociações na ONU de um novo tratado internacional que era uma iniciativa de Portugal que eu tinha estado a acompanhar. Na altura perguntei ao diplomata que me ligou: sabe quantos anos é que eu tenho? Depois falei com a minha mãe, que me disse: "Uma pessoa ter modéstia a mais também fica mal. Aceita lá isso." E eu aceitei [risos]. ?

Foi fácil?

Eu tinha 33 anos e estava em cima do pódio com um martelo na mão, com os embaixadores todos cá em baixo, todos de cabelo branco já, enfim... a dizerem- -me coisas que nunca diriam se eu não tivesse 33 anos e não fosse mulher, obviamente, e aquilo foi uma tarimba... foi fantástico! Mas eles foram horríveis. O primeiro ano foi horrível, indescritível. Depois acho que eles pensaram: "Ela aguentou- -se ao primeiro ano. Vamos trabalhar com ela!" E conseguimos, eu consegui. Fui eu que escrevi o texto do tratado, que foi aprovado por consenso na Assembleia-Geral da ONU no dia 10 de Dezembro de 2008. E isso foi uma grande coisa.

Foi o pontapé de saída para o resto do percurso?

Muitos países ficaram contentes comigo porque perceberam que eu não era uma enviada do mundo ocidental e que queria trabalhar por consenso. E isso fez com que ainda não tivessem acabado as negociações quando os diplomatas de alguns países começaram a dizer-me "candidate-se a relatora especial". Dois governos - o espanhol e o alemão - tinham uma iniciativa nova na ONU, que era a do direito à água, e queriam um relator para o direito à água. Pediram-me que fosse a candidata alemã e espanhola - o que é um bocado esquisito, porque eu não sou espanhola nem alemã [risos] - e eu pensei no assunto e disse que sim, e candidatei-me. E foi assim que fui eleita.

Durante seis anos foi relatora especial. O que significa isso?

Um relator especial tem por missão avaliar a forma como um determinado direito está ou não a ser respeitado pelo mundo fora. Só que nós temos de conciliar o cargo com a nossa outra vida, porque isto não é um cargo remunerado. E para tudo o que fazemos temos de arranjar financiamento: por exemplo, os governos suíço, alemão, espanhol e finlandês financiaram-me. Para tudo o que fazia tinha de arranjar dinheiro, porque temos um orçamento mínimo. Se não fossem estes financiamentos e o apoio da UNICEF e afins, não tinha feito um décimo do que fiz.

Conseguiu que o direito à água e ao saneamento fosse reconhecido...

Esse foi o meu primeiro objectivo quando fui nomeada. E pensei: "Então, Catarina, vais visitar países onde haja boas práticas - um bocadinho para dizer, 'Estão a ver? Já há países a fazer isto. Qual é o vosso medo de reconhecer o direito?'" Ir pela positiva, começar pelas boas práticas, fazer relatórios temáticos para esclarecer dúvidas que eu achava que as pessoas tinham (falar sobre saneamento, sobre a participação do sector privado...). E depois foi muitíssimo trabalho de relações públicas (RP). Muitíssimo. Quando fui nomeada achei que ia estar sentada atrás de uma secretária a escrever relatórios, e depois é que percebi que não era assim que se ia lá. Temos de fazer os relatórios, mas toda a parte de RP com as várias organizações - a ONU, a Organização Mundial da Saúde, a UN Water, a UNICEF, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas...

O direito à água e ao saneamento foi reconhecido em 2010. E depois?

Dediquei-me ao desenvolvimento de ferramentas para a aplicação do direito! Fiz um manual da aplicação do direito traduzido em cinco línguas, para o qual estivemos a trabalhar com centenas de pessoas no mundo inteiro. Fiz consultas, sei lá, no Nepal, na Bolívia, em África, na Europa. É um manual prático para a aplicação do direito: se eu sou deputado, o que tenho de fazer na prática? Se sou ministro, se sou regulador... com perguntas, com check lists. Por acaso, acho que está giríssimo! [risos]

E resultados práticos?

Em muitas destas coisas não estamos a falar de problemas agudos, mas de problemas crónicos. Quando estamos a falar de problemas agudos - por exemplo, execuções sumárias, tortura -, conseguimos ver coisas. Para aqui são precisas alterações que, às vezes, são mais profundas, que demoram mais tempo. Mas, por exemplo, fui em missão aos EUA e uma das coisas que recomendei na Califórnia foi que aprovassem uma lei sobre o direito humano à agua e ao saneamento. E aprovaram. Aliás, o governador da Califórnia, quando a lei estava a ser discutida no Congresso, leu uma parte do meu relatório e das minhas recomendações. E quando agora fiz uma carta pública sobre a situação em Detroit, por causa dos cortes de água às pessoas pobres, consegui uma moratória aos cortes - durante o Verão todo, não cortaram a água.

Mas o pior não são os países desenvolvidos...

Uma das coisas que me atormentavam era as caras das pessoas que eu conhecia nas missões. Lembro-me de uma mãe que eu conheci em Tuvalu, uma ilha perdida no meio do Pacífico, perto das Fiji. Fui a uma lojeca e vi que os pensos higiénicos eram caríssimos. Custava 3,5 dólares um pacote mais pequeno que aqueles que nós compramos. Perguntei-lhe como é que eles pagavam aquilo. "Durante esses dias, a minha filha não vai à escola, porque se comprarmos os pensos não temos dinheiro para a carrinha da escola. Portanto, ela não vai ou tem de ir a pé." Isto acontece por todo o lado: as miúdas não irem à escola cinco dias por mês. E têm piores notas que os rapazes porque vão à escola menos três meses por ano! As coisas começam a ter rosto. Acho que visitar os países foi uma coisa que me mudou imenso. As pessoas que me conhecem dizem que a forma de eu falar, a forma de eu dar conferências, mudou. Antigamente falava da teoria e passei a contar histórias. Isto transforma-se numa coisa concreta e real. É quando uma pessoa começa a pensar que a minha vida podia ser isto. Que podia ser violada porque não teria uma casa de banho em casa, e teria de ir para trás de um arbusto durante a noite e...

Fora dos países do Terceiro Mundo também há problemas de água e saneamento?

Há, claro. Mas a escala é diferente! Por exemplo, na Eslovénia, onde estive em missão - a água da Eslovénia é óptima, nem precisa de tratamento e é saborosíssima -, toda a gente tem água excepto a comunidade cigana, que eu fui visitar. Fiz umas recomendações - confesso que fiquei chocada com o que vi, porque tinha acabado de vir do Bangladesh, e as coisas que vi ali eram parecidas com as que vi lá. Depois das recomendações que fiz, vários membros do governo da Eslovénia meteram-se num carrinho e foram visitar as pessoas que eu fui visitar. Apanharam um choque dos diabos e começaram a trabalhar a legislação para consagrar o direito à água a nível constitucional.

Os responsáveis não vão ao terreno? O que é que falta aos nossos líderes?

Tive vários encontros com ministros e afins que são de a pessoa se passar. Eu acho que não é fácil a pessoa encarar a realidade porque a realidade é dura. Portanto, precisamos de políticos com coragem para enfrentar a realidade e para pensar em soluções para resolverem a realidade. Lembro-me de, em todas as missões, depois de visitar os bairros de lata, as zonas mais pobres, ter um debriefing com o governo em que contava o que via. Ficava tudo em estado de choque. Eu era estrangeira e estava a contar-lhes sobre o país deles, e ficava tudo com um ar espantado? Não sabem? Não querem ver? Acho que falta coragem e vontade de pôr os pés no chão. E falta a consciência do que eu acho que faz um governante ser bom governante, que é a forma como está a conseguir chegar às pessoas mais vulneráveis e desfavorecidas. Não é a forma como melhora a situação dos que estão mais ou menos. É uma boa altura para olhar para isto, porque os objectivos de desenvolvimento do milénio vão chegar ao fim - aquilo que nós vemos é que há progressos, mas os progressos vieram beneficiar os better off, e não as pessoas que estão pior. São os que estão melhor e melhoraram. Aliás, as análises dizem que o fosso entre ricos e pobres aumentou.

Isso não é também um problema civilizacional?

Não sei. A verdade é que, para a agenda do desenvolvimento do milénio, foram feitas consultas em 50 países e, depois, consultas globais, e um dos temas que saíram com maior força - o que saiu em maior força por parte da sociedade civil - foi a questão das desigualdades. Foi o tema! Acho que somos todos responsáveis, obviamente, em menor ou maior grau. Aliás, quando me perguntam "qual é o segredo do seu sucesso?", ou "quando é que as suas recomendações foram aplicadas?", digo sempre que é quando há uma sociedade civil forte: olhem para os EUA! Eles não largam o osso e obrigam os governantes a fazer. E isso é uma área em que ainda temos muito que galgar no nosso país.

Vai continuar a fazer a sua parte, portanto, ao liderar esta nova iniciativa?

Sim, fui convidada para ser directora-executiva de uma iniciativa mundial da ONU chamada Sanitation and Water for All. Disseram-me que será menos intenso do que ser relatora, porque tenho uma equipa muito maior na ONU, em Nova Iorque e em Genebra. Esta iniciativa já existia, mas agora está a ganhar mais dimensão. Na última reunião estava o secretário geral da ONU, o presidente do Banco Mundial, ministros de vários países, o rei da Holanda... é assim uma coisa um bocadinho grande, a ganhar dimensão. Quiseram alguém que tivesse experiência.

Pensa no que vai fazer depois? Daqui a dez anos, por exemplo?

Gostava de continuar na área internacional e gostava de ter funções que me permitissem mudar coisas, mudar o mundo... Lembro-me de, aos 18 anos, estar a falar com um assistente na faculdade que me falava com um ar muito maduro e que me dizia: "Ah, eu já perdi a ilusão de poder mudar o mundo." Eu achei-me muito estúpida, mas continuo a pensar que posso mudar o mundo. Acho que todos não só podemos, como devemos procurar mudar o mundo. Se não, o que é que andamos cá a fazer?