16.2.15

Estado paga quase 50 mil refeições por dia a famílias carenciadas

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Investigadora fez contas e analisou gastos com a medida. “Importa avaliar o encargo” da mesma quando comparada com outras, defende. Não é

Em cada dia, de Norte a Sul do país, quase 50 mil refeições são servidas pela Rede Solidária de Cantinas Sociais. Contas feitas, o Estado paga diariamente 122.560 de euros a instituições privadas sem fins lucrativos para garantir que em Portugal nenhuma pessoa fica privada de comer pelo menos uma vez por dia.

Os dados foram fornecidos ao PÚBLICO pelo Instituto de Segurança Social. A 31 de Dezembro de 2014, estavam em vigor 845 protocolos referentes a cantinas sociais, que significavam 49.024 refeições diárias. Os serviços centrais não conseguem dizer, todavia, quantas pessoas delas usufruíam.

A economista Cláudia Joaquim encheu-se de interrogações ao analisar esta medida, que faz parte do Programa de Emergência Social (PES) lançado em 2011 pelo Governo. Quais os critérios de selecção das instituições que assinaram protocolo com o Estado? Como se determinou a comparticipação pública? Como é monitorizada a medida, por exemplo, no que concerne ao número de beneficiários?

Os critérios de acesso parecem-lhe “relativamente genéricos”. Os protocolos que analisou mencionam pessoas desempregadas, com baixos salários ou doenças crónicas, mas não há uma tabela. Cada instituição apura o que é carência económica e decide se determinada família é ou não apoiada.

No entender da economista, a medida deve ser analisada numa “perspectiva de escolhas”. Sem negar o “mérito e a necessidade de uma resposta que vise fazer face a situações críticas e urgentes”, entende que “importa avaliar o encargo desta medida quando comparada com outras, que visam fim idêntico ou mais abrangente”.

Num artigo (O terceiro sector, acção social e equipamentos sociais, e a questão essencial para o futuro: que modelo queremos para Portugal?) escrito para o Observatório sobre Crises e Alternativas, criado pelo Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, estabelece uma comparação com o Rendimento Social de Inserção (RSI), medida que sempre foi encarada “com desconfiança” pelo segundo partido da coligação governamental, o CDS-PP.

600 euros por família
O Estado paga, no máximo, 178,15 euros por titular de RSI; 89,07 por cada um dos outros adultos que existam no agregado; 53,44 por cada criança. Ora, um casal com duas crianças recebe no máximo 374,1 euros de RSI. “Para o Governo é este o montante mensal necessário e suficiente para uma família com esta composição satisfazer as suas necessidades básicas”, sublinha Cláudia Joaquim, lembrando que os critérios de acesso à prestação são apertados e a medida envolve assinatura de contrato de inserção social que implica todos os membros.

Já às instituições particulares de solidariedade social (IPSS), o Estado paga 2,5 euros por cada refeição fornecida pelas cantinas sociais. Conforme o protocolo, podem as refeições ser fornecidas até duas vezes por dia, sete dias por semana. Quer isto dizer, nas contas da economista, que uma IPSS pode receber até 600 euros por mês para fornecer almoço e jantar a um casal com dois filhos e ainda cobrar 1 euro por refeição.

A comparação parece tanto mais relevante a Cláudia Joaquim quando a Rede Solidária de Cantinas Sociais “é uma medida prioritária para o Governo” (“passámos de 60 para 850 cantinas”, dizia ainda na quinta-feira, num debate sobre pobreza no Parlamento, o ministro da Segurança Social) e o RSI “tem sido objecto de sucessivas alterações legislativas e procedimentais”, que resultaram numa redução de beneficiários”. A redução foi progressiva: 526 mil em 2010; 448 mil em 2011; 420 mil em 2012; 360 mil em 2013; 210.669 em Dezembro de 2014. O valor médio por pessoa ficava-se pelos 91,84 euros.

A estatística do Instituto de Segurança Social mostra queda noutras prestações sociais não contributivas. Por exemplo, em Dezembro, havia menos de um milhão e 200 mil crianças a receber abono de família — eram mais de 1 milhão e 800 mil em 2010. Nesse mesmo mês, havia 171.378 idosos com Complemento Solidário (246.664 em 2010).

Este recuo, na opinião da economista, não se afigura “justificável num contexto de austeridade, de elevadas taxas de desemprego e de forte diminuição do rendimento disponível de muitas famílias”. A tendência seria de crescimento de recurso a apoios sociais. Só que os governos, primeiro o liderado por José Sócrates, depois o liderado por Pedro Passos Coelho, optaram por apertar as regras.