28.4.15

Quantos Migrantes cabem num caiaque?

por Catarina Santos, in RR

Dentro do caiaque de Georges há demasiadas histórias de vida e morte no mar. Remou com elas da Tunísia até Bruxelas e está há sete meses no Parlamento Europeu, a lutar por uma nova política europeia de imigração.

O sol da tarde espreguiça-se pelas travessas estreitas de Alvor. Homens de boina esticam os braços nos bancos de madeira e assistem ao movimento cíclico da multiplicação de gente no Algarve, à medida que o Verão se aproxima.

Duas esquinas abaixo, entre cactos e limoeiros, há uma antiga casa de família transformada em bar. Era ali que, há quatro décadas, o rapaz vindo de França reencontrava avós, tios e primos, um mês por ano. Via as personagens locais como réplicas dos filmes de Marcel Pagnol e deixava-se embalar pelos dias como se também ele estivesse sentado nos bancos de madeira do largo central, a imaginar a pacata vila numa tela de cinema.

Tudo era diferente da vida nos arredores de Paris, onde Georges Alexandre nasceu, em 1968. Filho de emigrantes portugueses, com dois irmãos, falava francês na escola e português em casa. Agora é raro regressar à terra da família e tem a sensação de não pertencer a nenhum lugar concreto. Foi emigrante a vida toda.

Quando tinha pouco mais de 20 anos foi viver para o Canadá. Andou temporadas largas pela Argentina e, a partir de 2005, começou a passar os Invernos em Itália. E então tudo mudou.

Aquela volta a Lampedusa de caiaque foi a primeira tentativa de se fazer ouvir. Não tinha qualquer experiência com canoas e teve de fazer uma formação intensiva. Podia “ter ido de bicicleta”, mas o contacto imediato com a água pareceu-lhe a forma mais simbólica de enfrentar o mar “ao mesmo nível dos migrantes”.

Tinha passado quatro anos a ler relatórios e notícias sobre imigração. Estava “farto de ver os políticos sentados a falar de coisas que não conhecem”. Percebeu que “não há nenhuma política” comum de imigração europeia e começou a parecer-lhe absurda a Convenção de Dublin, segundo a qual um requerente de asilo na Europa tem de fazer o pedido e aguardar resposta no primeiro país a que chega.

No início de 2011, quando a Primavera Árabe estourou, estava ali, no coração do Mediterrâneo. Viu “os primeiros 217 migrantes tunisinos” a chegar e deu por si a fazer de intermediário entre as autoridades e aquelas pessoas. Ouviu em primeira mão que fugiam depois de lhes pilharem e queimarem as casas, durante o golpe de Estado que depôs Ben Ali.

“Depois, numa semana já eram mais de cinco mil em Lampedusa, para uma população local de 5.500. Foi uma invasão total” e provocou focos de tensão – entre receios de insegurança e “alguma xenofobia”.

Nos meses que passou em Lampedusa, Georges foi vendo cada vez mais desembarques, cada vez mais migrantes acumulados na ilha, cada vez mais corpos. E foi então que decidiu somar milhas ao caiaque e ir da Tunísia até Bruxelas. Chamou à aventura “Caiaque pelo direito à vida” e foi documentando a viagem no Facebook, em versão francesa e italiana.

Sentado numa canoa só com o mínimo indispensável lá dentro, saiu da costa de África em Setembro de 2011. Chegou a Bruxelas três anos e 3.700 km depois, com paragens prolongadas pelo meio.

Pelo caminho foi recolhendo assinaturas para uma petição por uma política migratória comum, pela criação de rotas de imigração seguras e por um melhor controlo dos fundos europeus destinados a esta área.

Georges não vê necessidade de um aumento das verbas – denuncia antes o mau uso das existentes, sustentando que acabam em mãos erradas. E dá exemplos: as empresas privadas que gerem centros de acolhimento e que “vêem os migrantes meramente como um negócio”.

Uma investigação recente das autoridades italianas detectou ligações da máfia siciliana a alguns destes centros, com suspeitas de uso de migrantes para trabalhos forçados e prostituição. No decorrer da mesma operação foram interceptadas chamadas telefónicas em que elementos da organização admitiam facturar mais com toda a estrutura em torno do acolhimento dos migrantes do que com o tráfico de droga.

O lusodescendente defende ainda a criação de uma organização para a gestão da imigração e da procura de asilo em toda a União Europeia. Não para “abrir a porta a toda a imigração clandestina”, explica, mas para que o problema não seja suportado unicamente pelos países do sul da Europa.


3.700 km de sustos e sortes

No percurso em alto mar (Tunísia - Lampedusa - Malta - Sicília) teve apoio de um barco à vela. O resto do trajecto fez sozinho. Subiu a costa oeste de Itália e pouco antes de Nice começou a subir o rio Rhône. Foi a parte do percurso que demorou menos tempo – “cerca de sete meses” – mas a mais difícil. “No mar posso fazer 30 e tal quilómetros num dia, mas no rio há aquelas barragens feitas só para grandes embarcações”.

Por várias vezes teve de tirar a canoa da água, carregá-la pela margem e contornar as barragens. Aguentou cabeçadas de silurus, uns peixes gigantes que, por várias vezes, ameaçaram fazer virar o caiaque. O maior susto aconteceu a 100 km a sul de Roma, quando foi apanhado por uma tempestade. Obrigou-o a “guerrear com o mar” durante meia hora. Chegou a pensar que morreria ali.

Quando Georges viu a morte de perto

Quando chegou à praia, exausto, questionou-se seriamente sobre “o que fazia ali, que sentido fazia tudo aquilo”. E então pensou novamente nos riscos que correm os migrantes no Mediterrâneo, todos os dias. Demorou meses a recuperar das mazelas. E continuou.

Teve outros momentos de aperto, sofreu lesões e avarias, mas voltou sempre a assumir a missão insólita de um homem sozinho a remar até Bruxelas. Não teve qualquer dificuldade em criar burburinho por onde passava. Em três anos, explicou o que movia, recolheu apoios, ouviu críticas. E acabou convencido de que “a maioria do discurso anti-imigração” tem por base uma “grande falta de informação”.


3.700 km de sustos e sortes

No percurso em alto mar (Tunísia - Lampedusa - Malta - Sicília) teve apoio de um barco à vela. O resto do trajecto fez sozinho. Subiu a costa oeste de Itália e pouco antes de Nice começou a subir o rio Rhône. Foi a parte do percurso que demorou menos tempo – “cerca de sete meses” – mas a mais difícil. “No mar posso fazer 30 e tal quilómetros num dia, mas no rio há aquelas barragens feitas só para grandes embarcações”.

Por várias vezes teve de tirar a canoa da água, carregá-la pela margem e contornar as barragens. Aguentou cabeçadas de silurus, uns peixes gigantes que, por várias vezes, ameaçaram fazer virar o caiaque. O maior susto aconteceu a 100 km a sul de Roma, quando foi apanhado por uma tempestade. Obrigou-o a “guerrear com o mar” durante meia hora. Chegou a pensar que morreria ali.

Quando Georges viu a morte de perto

Quando chegou à praia, exausto, questionou-se seriamente sobre “o que fazia ali, que sentido fazia tudo aquilo”. E então pensou novamente nos riscos que correm os migrantes no Mediterrâneo, todos os dias. Demorou meses a recuperar das mazelas. E continuou.

Teve outros momentos de aperto, sofreu lesões e avarias, mas voltou sempre a assumir a missão insólita de um homem sozinho a remar até Bruxelas. Não teve qualquer dificuldade em criar burburinho por onde passava. Em três anos, explicou o que movia, recolheu apoios, ouviu críticas. E acabou convencido de que “a maioria do discurso anti-imigração” tem por base uma “grande falta de informação”.


Remar fora de água

George chegou a Bruxelas em Setembro de 2014. Arrastou o caiaque pelas ruas durante 8 km, do rio Sena até ao Parlamento Europeu. E por lá tem estado até hoje.

Nos meses mais quentes viveu num camião. Quando o frio começou a apertar, “uma senhora velhinha”, que conheceu pelo caminho e que foi seguindo a sua aventura pela internet, emprestou-lhe o apartamento nos arredores da cidade. “Nunca pedi nada a ninguém e as coisas foram chegando assim”.

Depois de conferências de imprensa, debates e do rol de entrevistas que o focaram num primeiro momento, tem-se desdobrado em reuniões com deputados ligados à área da imigração. Conta-lhes o que viu em Itália, como os centros de acolhimento são geridos e porque defende uma política comum de imigração.

Nos meses mais quentes viveu num camião. Quando o frio começou a apertar, “uma senhora velhinha”, que conheceu pelo caminho e que foi seguindo a sua aventura pela internet, emprestou-lhe o apartamento nos arredores da cidade. “Nunca pedi nada a ninguém e as coisas foram chegando assim”.

Depois de conferências de imprensa, debates e do rol de entrevistas que o focaram num primeiro momento, tem-se desdobrado em reuniões com deputados ligados à área da imigração. Conta-lhes o que viu em Itália, como os centros de acolhimento são geridos e porque defende uma política comum de imigração.

Desde que Georges Alexandre começou o projecto “Caiaque pelo direito à vida” morreram mais de seis mil pessoas a tentar chegar à Europa pelo Mediterrâneo. Um drama humano que cresce a cada dia, retratado na grande reportagem da Renascença “A sul da sorte”.