25.5.15

Bairro do Amor. A vida aqui não é um carrossel, é uma montanha-russa

Marta Cerqueira, in iOnline

Liliana prescinde de revelar o último nome para continuar a poder falar do que quer. “Estamos habituados a que só as pessoas boazinhas ajudem e eu posso ser uma cabra quando quero.” Formalismos à parte, vamos conhecer a psicóloga que fez do blogue pessoal uma associação de solidariedade.

Começamos com um aviso: este texto é sobre solidariedade mas não estamos aqui para falar de pobrezinhos nem das pessoas boazinhas que os ajudam.

Em forma de lista, a autora do blogue Quadripolaridades explica que diz palavrões, come frango assado com as mãos, arrota, não é fofinha nem meiguinha. Em resumo: “Não sou nada boazinha, posso até ser uma cabra quando quero.” Exactamente para poder continuar a dizer aquilo que lhe apetece no blogue, a autora esconde a cara e o último nome.

Liliana, como se apresenta, é psicóloga, gestora de recursos humanos, mãe, voluntária e nasceu com espinha bífida. “Ter uma deficiência dá-me essa vantagem, posso gozar com quase tudo”, refere, com um sarcasmo que nem sempre é compreendido. Uma vez gozou com os postais pintados com a boca por deficientes, que normalmente são de naturezas mortas. “São de naturezas mortas porque a pessoa demora tanto tempo a pintar que a natureza morre”, lembra a piada, recordando em simultâneo a chuva de críticas. “Mas eu também pintei desses postais e fazia desenhos mesmo feios e sei que as pessoas compravam por pena”, lembra, calando assim quem a acusava de ser insensível.

Influenciada por pais que fizeram da doença da filha motivo para se associarem e dedicarem parte da sua vida ao voluntariado, Liliana tirou proveito das vantagens de viver em comunidade. Com uma família minhota, habituou-se a ficar com a vizinha quando a avó não podia ir buscá-la, viu a aldeia juntar-se para pôr de pé o muro do vizinho e assistia às trocas de alimentos, embora cada casa tivesse uma horta. “Sempre senti que fazia parte de uma comunidade, estou habituada aos portões abertos e às mangas arregaçadas típicas do Minho”, conta ao B.I.

A vontade de ajudar manteve-se em forma de voluntariado, a par do curso de Psicologia, escolhido também para continuar a poder ajudar os outros, “não porque fosse especialmente boazinha”, lembra, mas porque sempre repudiou os estereótipos quando se tratava de ajudar. “A discriminação positiva é tão grave como a negativa, por isso aflige-me pensar que só as pessoas ditas boazinhas podem ajudar.”

Trabalhou numa prisão, na Casa Pia, mantinha-se como voluntária em algumas associações e vivia uma fase centrada na carreira, em que só procurava mais dinheiro e mais trabalho. Mas do mais fez-se menos. “Percebi que estava a ser menos filha, menos neta, menos em geral.”

A gravidez da sua única filha foi de risco, o que a obrigou a descansar e lhe deu tempo para pensar no que queria fazer. Numa das muitas horas passadas no hospital recebeu a visita da Bia, uma menina que acompanhava a mãe, também grávida, que estava internada no quarto ao lado. “Tens um mano na barriga?”, perguntou a Bia, isto porque sabia que na barriga da sua mãe estava o mano Guilherme que a ia salvar da leucemia. Liliana decidiu contar a história no seu blogue e percebeu que por fim o espaço que “usava para dizer umas balelas” podia ter um propósito.

Conseguiram ajudar a família, que passava por dificuldades financeiras, mas não conseguiram salvar a Bia. “Quando és mãe ficas muito maricas e começas a projectar o teu filho em todas as crianças”, explica Liliana, quase a justificar todos as histórias que deram continuidade à da Bia.

Para o Rodrigo, que precisava de ir à Alemanha tentar um tratamento de células dendríticas, juntou-se a outros blogues e, em grupo, conseguiram angariar mais de 7 mil euros. O Rodrigo acabou por não resistir para fazer a viagem, mas não foi isso que interrompeu a onda de solidariedade. Distribuiu cobertores entre os sem-abrigo do Porto, associou-se à entrega de lenços a mulheres com cancro e fez da festa de aniversário da filha um evento público em que em vez de prendas as pessoas davam sangue ou se inscreviam como dadores de medula óssea.

Mas só quando lhe chegou a história da Mariana, uma jovem açoriana que precisava de uma cadeira de rodas eléctrica, é que o voluntariado se tornou coisa séria. Um mecenas do Algarve depositou-lhe na conta os 2500 euros necessários – “a sorte é que sou uma pessoa séria, senão já estava de férias nas Baamas” – e juntos foram entregar a cadeira aos Açores. Ao sobrevoar o Atlântico, o mecenas desafiou Liliana a tornar o voluntariado uma coisa séria, dando-lhe a forma de associação. “O nome Bairro do Amor foi automático, queríamos algo ligado a comunidade, em que todos nos tratássemos por tu.”

O aval do cantor Jorge Palma para usar o nome de uma das suas músicas mais conhecidas deu-lhe até honras de padrinho da associação. A partir daí foi só juntar os actuais 118 sócios espalhados pelo país, e até lá fora, ainda que de forma remota. “O Facebook é o nosso escritório”, conta Liliana, acrescentando que, apesar de não terem uma sede, contam já com uma madrinha em cada distrito do país, que vai sinalizando os casos mais graves em cada local.

“O Bairro do Amor ajuda pessoas com vidas comuns e que, por algum azar, precisam de um empurrão”, explica, recusando a ligação àqueles que chama “pobrezinhos de estimação”. Sinalizam um caso por mês e permitem que todas as pessoas ajudadas “paguem” a ajuda em serviços. “O mês passado ajudámos uma senhora ucraniana com dinheiro e comida e este mês vai dar uma aula de história da Ucrânia”, conta como exemplo. Com o pragmatismo que a caracteriza, Liliana garante que até no voluntariado é preciso quebrar barreiras. “Aquela ideia do só faço o bem para ajudar os outros é mentira. Se ajudo é porque também me faz sentir bem.”