12.6.15

"Ser pobre é uma grande escola de vida"

Por Leonardo Ralha, in Correio da Manhã

Crónicas da crise a que só fogem os sem-abrigo e belmiros.

Portugal foi retratado, todos os domingos, por um homem que montava pneus e alinhava direções. Morreu em março, mas aquilo que disse, e o que poderia ter dito, chega-nos pela mão de Victor Bandarra, um dos mais conceituados repórteres portugueses, que agora lança o livro de crónicas ‘Assim Falava Zé dos Pneus’ (Gradiva).

Que impressão terá de Portugal quem ler este livro daqui a dez ou vinte anos?

Quando escrevi estas crónicas pensei que poderiam ser um bom material de trabalho para os historiadores – ou os nossos filhos – perceberem o que foram estes anos de crise. Refletem muito o que os portugueses são hoje, tendo em conta o que foram no passado, e no futuro penso que os mais jovens, ou mesmo nós, iremos ver que fazem sentido. Têm muito a ver com os últimos dois ou três anos.

Teve noção de que estavam tão marcadas por pobreza, desemprego e emigração?

O livro tem muito a ver com as dificuldades dos pobres, dos remediados, e até dos ricos. Como dizia o meu amigo Zé dos Pneus, só há dois tipos de portugueses que não sentem a crise: os sem-abrigo, que dormem no banco de jardim e se estão marimbando, e os Espíritos Santos e Belmiros, que não a sentem como o comum dos mortais.

Aprender a ser pobre é trabalhoso?

Aprender a viver com a pobreza é que é muito trabalhoso. Ser pobre ou ter dificuldades é uma grande escola de vida, mas é sempre dramático, por muito que haja pobres contentes. Com a tendência para o fado, vemos dificuldades onde por vezes não existem. Mas não somos um povo de brandos costumes. Um dia isto pode rebentar.

Quem foi o Zé dos Pneus?

Chamava-se Luís dos Pneus. Ficou Zé porque dizia que Luís dos Pneus só havia um: o presidente do Benfica. Podia ter ficado Hica, a alcunha dele, mas escolhi Zé dos Pneus. Era uma pessoa com uma graça incrível.

Como se conheceram?

Alguém me indicou, há uns anos, uma loja de pneus bons e baratos. Desde então, almoçávamos uma ou duas vezes por semana. Era um sujeito com grande filosofia de vida, que não deixava ninguém indiferente. Baseei-me nele. Obviamente que muitas das coisas que o Zé dos Pneus diz no livro não foi ele quem as disse, mas podia ter dito. Acabou por funcionar como o meu alter ego. É o retrato do português médio, atento, malandro, ao mesmo tempo boa gente, com carinho pelos outros, mas sempre no desenrasca. Nós somos um povo do desenrasca.

Ele lia as crónicas?

Às vezes dizia-me: "Aquela frase que puseste na minha boca… Quando é que disse isso?" E eu respondia: "Não disseste no outro dia?" E ele: "Não me lembro de ter dito." Onde quer que esteja, sei que teria
orgulho. Pensei que iria aguentar até ao livro ser lançado, mas morreu em março.

Vê a crónica como a continuação do jornalismo por outros meios ou literatura sujeita às horas de fecho?

É uma mistura. A crónica é uma disciplina nobre do jornalismo, a caminho da literatura. Houve grandes cronistas no jornalismo português e julgo que hoje há menos.

Para conhecer pessoas há que andar na rua. Conhece muitos jornalistas que ainda o façam?

Cada vez há menos jornalistas que andem na rua, ou que quando andam na rua estejam atentos. Verdadeiro jornalista é aquele que sente curiosidade pelo que o rodeia, e sobretudo pelas pessoas. Não pode haver um jornalista que diga que não gosta de futebol e que isso não lhe interessa nada. Pode não gostar, mas tem de se interessar.

Os jornalistas conhecem melhor as fontes do que os leitores e telespectadores?

Os velhos jornalistas – e tive bons mestres – diziam que era preciso olear as fontes. Mas quando somos demasiado próximos deixamos de ter fontes, pois acaba por ser uma relação de dependência e até de amizade.

Isso agravou-se desde que começou na profissão?

Penso que sim. Sou de uma geração em que os jornalistas já tinham preparação cultural diferente, e frequência universitária, mas apanhávamos os velhos jornalistas e havia uma junção de competências. Também sou do tempo em que os jornais eram ideológicos, o que era mais honesto do que o jornalismo de hoje, com dois ou três grupos económicos, que sustentam dois ou três jornais e mais duas ou três televisões.

Depois dos jornais, esteve na fundação da TVI, onde ainda trabalha. Que balanço faz destes anos?

Já é mais de metade da minha vida jornalística. Tenho 36 anos de carreira e 23 na TVI, que tem sido um autêntico carrossel. Começou com dificuldades, teve alguns equívocos, mas havia muita animação, pois queríamos fazer uma televisão diferente. Já passei por sete, oito ou nove gerências, muitas direções de Informação, e vamos continuando. A maior parte dos que lá estão há mais anos, uns mais competentes e outros menos, têm brio profissional.

Tem paciência para quem lhe diz que a televisão está muito pior do que era?

Vamos dividir a questão: há o jornalismo televisivo, que não está pior – embora pudesse estar muito melhor – e a televisão em geral. Os talk shows são muito iguais, as novelas portuguesas já não têm o brilho que algumas tiveram… A crise também influenciou a televisão.

Tem perfil no Facebook?

Puseram-me no Facebook há uns anos, mas nem sei se o perfil ainda existe. Só lá fui uma ou duas vezes. Tenho medo daquilo. Mas o meu filho diz-me que quem não está no Facebook não existe.

Mas continua a existir.

Continuo. Reconheço que tem vantagens, mas também muitas desvantagens. Sinto-me nu no Facebook. Mesmo que seja só visto por amigos, tenho pudor, embora seja extrovertido, em abrir-me em certas coisas. E o Facebook, a partir de certa altura, é uma casa de meninas. Um bordel, sem qualquer sentido pejorativo na palavra. Como disse alguém, aproxima os que estão longe e afasta os que estão perto. Isso chateia-me.


Zé dos Pneus descrevia o Google como o local onde se encontra a melhor versão da realidade que interessa a cada um. A internet tem culpa do esquecimento global em que vivemos?

Ainda há uns anos, quando se queria saber algo, falava-se com quem conhecia mais do assunto, ia-se à biblioteca ou ao arquivo. Agora faz-se uma busca no Google e aparecem 50 mil coisas. Lê-se as que estão primeiro, sem sentido crítico, ou saber se é verdade ou mentira. Passa a ser verdade por aparecer no Google e muitos jornalistas fazem isto. Há um risco de esquecimento global da realidade.

Já existe uma geração que só conhece esse Mundo.

Claro. Até o sexo… Dão-se grandes quecas pela internet.

Não será propriamente a coisa mais agradável…

Também acho que não. Mas há pessoas viciadas na internet. Até velhinhos que se sentem sós. Metem-se na internet e ficam dependentes.

Partilha apelido com o sapateiro de Trancoso cujas profecias levaram à criação do mito do regresso de D. Sebastião…

Gonçalo Anes Bandarra, culpado, em boa parte, pela nossa mentalidade. Inventou a chegada de alguém que nos vem salvar, o que nos tem lixado ao longo dos séculos. Não sou sebastianista. Acredito que Portugal tem futuro.

É verdade que não são os filhos, e sim os netos, das p... que estão no poder?

Isso estava escrito numa rua perto da Mouraria. Alguém tirou "filhos" e pôs "netos". Esta geração já começa a ser a dos netos da geração de Abril, que degenerou nisto.

A que se deve o seu fascínio por África?

Muita gente pensa que nasci em Angola, o que não é verdade. A primeira vez que lá fui foi em 1979. O fascínio não é apenas pelo cheiro e pela paisagem. É pelas pessoas. Os africanos estão no continente mais sofrido, abandalhado e explorado, e no entanto são as pessoas mais puras.

Apesar da plutocracia nesses países?

Há muita malandragem, e governos africanos que em vez de trabalharem para o bem do povo estão a trabalhar para o seu próprio bem, mas penso que os governos europeus são muito mais cleptocráticos. Ainda há um bocado de etnocentrismo xenófobo e muitas vezes racista.

Escreveu que Pessoa, Camões, Shakespeare e Zé dos Pneus irão desaparecer no pó do tempo, pois "a eternidade é chata e comprida". O que sobrará de tudo o que fez e ainda fará?
Se for para a semana, ou daqui a um mês, qualquer coisinha. Se for daqui a dez anos, sobrarão outras coisas. Daqui a cem anos espero que ainda saibam que houve um cronista e jornalista. Daqui a mil anos, o Shakespeare vai desaparecer. Todos desapareceremos. Viemos do pó e em pó havemos de nos tornar. E eu até acredito na eternidade.