20.7.15

"O meu maior sonho era fechar o Banco Alimentar"

Paulo Jorge Pereira, in Económico

Isabel Jonet tem dedicado grande parte da vida a lutar contra a pobreza. Nesta entrevista, onde fala sobre o País, o trabalho e a vida, diz que o Banco Alimentar e a Entrajuda "são um sucesso que não queriam ser".

Licenciada em Economia na Universidade Católica, não teve nota alta do seu professor de Finanças Públicas, Cavaco Silva, mas gostou muito de ser da turma do ex-ministro Vítor Gaspar, a quem considera "uma das pessoas mais competitivas" que conheceu. Quanto à responsabilidade de Portugal ser um país pobre, "é de todos nós".

Como estudante universitária foi da turma de Vítor Gaspar e aluna de Cavaco Silva: que imagem guardou dos dois e que diferenças encontra nos seus percursos?

Fui estudante na Católica e, na altura, Cavaco Silva era professor de Finanças Públicas, só dava as aulas teóricas. Eu tinha um grupo com mais dois colegas, um deles meu futuro marido, e fizemos um trabalho que não foi bem recebido porque era bastante crítico da decisão de valorização do escudo. Só tivemos 10, não sou politicamente correcta, não penso nas consequências das coisas, nunca falei para agradar fosse a quem fosse: Cavaco Silva já era uma pessoa reservada, não havia muito contacto com os alunos ao contrário de António Borges que falava muito connosco.

E Vítor Gaspar?

Era o ‘marrão' da turma! ‘Marrão' na acepção de bom aluno e estudioso, sem ter implícita uma crítica a quem estuda. Tenho o livro de caricaturas dessa fase, entre 77 e 82, e na dele está de dedo no ar a dizer: ‘Desculpe, professor, mas não é assim!' Dava-me lindamente com ele, sempre fui muito gozona, metia-me com as pessoas todas e achavam-me graça. O Vítor Gaspar já nessa altura sabia mais do que os professores e corrigia-os. Sempre foi uma pessoa séria, defendendo tudo com convicção, tenho muito boas recordações dele e da Sílvia, a mulher, ambos ‘marrões'!

Então, tem ideia que o "enorme aumento de impostos" também foi defendido com seriedade por Vítor Gaspar?

O "enorme aumento de impostos" seguiu-se à impossibilidade de prosseguir uma ‘enorme' redução da despesa que teria sido a via prioritária e mais aconselhada. Mas ele nada faz sem ser profundamente reflectido, é das pessoas mais competitivas que conheci, não gosta de perder nem a feijões!

Pelos seus conhecimentos de Economia, compreende as medidas neste ciclo entre 2011 e 2015?

Compreendo, compreendo também o peso enorme que teve para as famílias, mas penso que o resultado está à vista e pergunto se haveria alternativa. Já nos esquecemos de como estávamos há quatro anos, numa situação dificílima tal como a Europa inteira. Ainda não nos vimos livres dessa situação, apesar de entrarmos agora num período de eleições e parecer que tudo está resolvido...

O que é aconselhável?

Não podemos aliviar demasiado, nem prometer demasiado. Manter o realismo sem expectativas demasiado positivas é essencial. Ganhámos muito com a União Europeia, mas perdemos mecanismos de intervenção económica como a desvalorização da moeda.

Tendo em conta as ajudas que recebeu no pós-guerra, compreende o papel da Alemanha a exercer autoridade moral sobre os estados do sul da Europa com insistência no cumprimento de regras?

A questão não é moral ou financeira, é de cumprimento de regras de partilha de soberania subscritas pelos estados-membros no exercício da sua soberania plena.

Mas então não tem memória, pois quando precisou de ajuda teve-a...

Convém nos próprios não termos falta de memória e se de alguma coisa não nos podemos queixar é de falta de ajuda. Convém não esquecer quem é que disse "presente" quando estivemos à beira de cessar pagamentos de salários da função pública e prestações sociais. Houve uma altura em que não sei se não estávamos piores do que a Grécia... A grande diferença entre portugueses e gregos é que nós sempre fomos mais realistas, eles têm uma anarquia que nós não temos. Estou convencida que vai acabar por correr mal na Grécia, onde estou a ajudar a abrir bancos alimentares. O actual governo grego foi eleito por menos de um terço do eleitorado e o que oiço lá é que este governo e estas medidas não são bem aceites pela generalidade da população. Temos os jornais aqui inundados de notícias que não são necessariamente correspondentes à situação real da opinião pública grega. Aqui havia um sentimento generalizado de que era preciso fazer alguma coisa, porque gostamos de Portugal.

Quem é responsável por Portugal ser pobre?

De nós todos, porque houve uma miragem colectiva pela Europa. Não temos dimensão de mercado como Espanha, Itália ou França que serão capazes de dar a volta à crise mais depressa porque têm mercados internos fortíssimos que puxam pela economia. Nós vamos buscar dimensão de mercado lá fora. Muitas das nossas empresas conseguem ter maior volume de vendas fora, mas somos um País com um milhão de pessoas que vivem com menos de 280 euros por mês, há dois milhões com menos de 400 euros por mês, há 40% que são pensionistas e, portanto, quem é penalizado? São os que contribuem! Cada vez que alguém foge aos impostos está a penalizar quem paga, mas todos somos coniventes com a fuga aos impostos, pois muitas vezes pagamos coisas sem pedir facturas por falta de educação cívica.

Não ser politicamente correcta levou-a a polémicas com frases que disse e mais tarde explicou melhor: mantém a ideia de preferir a caridade à solidariedade social?

Não ligo a polémicas. Está a falar sobre a história dos bifes, não é? Nem gosto de bifes, mas, quando cheguei a casa e estava aí um escândalo porque os portugueses gostam disso, uma das minhas filhas perguntou logo: ‘Era uma metáfora, não era?' Mas há pessoas que não percebem metáforas ou não querem perceber e gostam mais de agredir, enfim, não liguei. Nunca tentei explicar alguma coisa melhor, aquilo que disse, está dito e mantenho: as pessoas não podem viver acima das capacidades, as economias e as famílias também, se não há dinheiro para comer bifes, não se come. Se há um conjunto de pessoas que gostam de descontextualizar aquilo que se diz, paciência. No caso de caridade e solidariedade social são coisas diferentes: a primeira está ligada, na ideia das pessoas, ao assistencialismo, a dar uma esmola.

E para si?

Para mim, não: encaro a caridade na acepção de São Paulo como amor pelo outro, aquele a quem eu amo porque faz parte da minha vida, ou seja, tal e qual como a ideia do voluntariado e do bem comum. Sou mais adepta da caridade porque vejo todos como seres humanos que fazem parte da minha vida. A diferença, na minha acepção e que não é a comum, tem a ver com coisas mais estruturantes que provoquem alterações e gerem sustentabilidade e não de emergência. Há 10 anos fundei a Entrajuda numa altura em que não se falava de crise. Comecei a ver que as instituições de solidariedade social, a maior rede que existe em Portugal para combater a pobreza e dar apoios, estavam dependentes do Estado. Nada sabem de gestão, têm à sua frente pessoas óptimas que são verdadeiros santos, mas desperdiçam recursos escassos. Quando lancei a Entrajuda levei-lhes gestão de modo a que distribuam melhor o pão do Banco Alimentar e evitar que fiquem tão dependentes do Estado. Ao fim de um ano abri o Banco Não Alimentar, do lado de lá da avenida de Ceuta, e a primeira coisa que fizemos foi transformar o bairro da Quinta do Cabrinha que era fechado para o interior, cheio de droga, não se entrava lá. Pintámos o bairro com eles e, hoje em dia, o bairro está aberto com as pessoas felizes.

Como foi esse processo?

Fomos buscar às empresas materiais que eram desperdícios dessas empresas e também algumas pessoas já reformadas ou em pré-reforma, como contabilistas, informáticos ou advogados, levando competências para o terceiro sector através de acções de formação. De repente, veio a crise, o Estado cortou nas instituições de solidariedade social, mas algumas destas instituições já estavam num caminho de maior eficiência na gestão. Foi estruturação e não assistencialismo, por isso digo que prefiro a caridade entendida como levar amor para que as pessoas se ponham de pé e as instituições mais estruturadas.

Não ficou incomodada por lhe chamarem salazarenta e outras coisas?

O que é isso de salazarenta? Não sei, não me revejo de forma alguma na figura política de Salazar. Se é dedicar a minha vida inteira enquanto voluntária a procurar minorar as carências de centenas de milhar dos meus concidadãos, numa organização da sociedade civil que se substitui às insuficiências do Estado ou pensar que as pessoas e as sociedades devem viver em linha com as suas possibilidades, se calhar serei isso tudo. Pena que não existam mais, nesse caso, diria eu. Não ligo a isso e não é por ser arrogante - quem trabalha aqui todos os dias sabe o que faz. Só fico incomodada pelas penas que isso colocou aos meus filhos pequenos. Neste País vive-se em dualidade (esquerda/direita, preto/branco, Benfica/Sporting) quando há muito mais do que isso. E as pessoas em Portugal têm uma coisa terrível: a última palavra dos Lusíadas, a inveja, sobretudo do sucesso. E não percebem que o Banco Alimentar e a Entrajuda são um sucesso que não queriam ser, ou seja, o meu maior sonho era fechar o Banco Alimentar, sinal de que não seria preciso. Para se ver como é a falta de estratégia neste País na luta contra a pobreza, pois há pouco dinheiro e vivemos para uma legislatura e, no final, logo se vê, a pobreza estrutural envolve 15% da população e a conjuntural é muito difícil de resolver, pois as pessoas não encontram emprego.

Consegue ter tempos livres?

Tenho pouquíssimo tempo e durmo poucas horas. Todos os dias leio, sou leitora compulsiva, leio tudo, até os pacotes de cereais! Mas tenho para mim todo o tempo de que efectivamente necessito. Consigo gerir e a minha família é realmente o melhor emprego de tempo que poderia ambicionar.

Não tem ideia que a consideram muito centralizadora?

Se calhar, sim.

Mudaria?

Talvez, mas formo muitas equipas e, às vezes, centralizo porque prefiro fazer as coisas por ter pouco tempo, mas nunca tomo decisões sem ouvir as pessoas.