20.7.15

Sem-abrigo tomam a palavra na Assembleia da República

Maria João Lopes, in Público on-line

O movimento Uma Vida como a Arte quer que o Ministério Público investigue as causas de morte de muitos sem-abrigo.

Mais do que ao anonimato, eles estão habituados a serem tratados com indiferença. Sentem o preconceito. Foi por isso simbólico, e não porque devesse espantar alguém, que um grupo de sem-abrigo tivesse ido à Assembleia da República, a casa da democracia, mas também o lugar do poder, das gravatas e de quem tem voz. Eles não a têm na maior dos dias. Nesta sexta-feira, porém, os papéis inverteram-se: o grupo tomou a palavra na sala do Senado e os deputados do Bloco, que os levou lá, ouviram.

O BE enviou convites aos grupos parlamentares e a várias associações. Dirigentes bloquistas, entre os quais Catarina Martins, do Partido Ecologista Os Verdes e agentes de várias associações marcaram presença, mas na parte aberta a questões mais nenhum partido se identificou.

O grupo integra o movimento Uma Vida como a Arte, do Porto. Têm histórias de noites a dormir na rua, passados com drogas, recordações de quando tinham funcionários a trabalhar para eles e depois tudo ruiu, o dia em que o desemprego os arrastou para o resto. “Pode acontecer a qualquer um”, dizem.

Alguns vivem agora em quartos. Não é suficiente. Um sem-abrigo só deixa de o ser quando está inserido no mercado de trabalho, sem necessitar de apoios. Por isso, trouxeram várias reivindicações. E vão mover uma acção contra o Estado português por violar a Constituição ao não respeitar os direitos no que toca à saúde, à habitação, entre outros, e pedir ao Ministério Público que investigue as mortes dos sem-abrigo no Porto.

Têm números na ponta da língua. Garantem que entre 2006 e 2012 morreram em média 18 sem-abrigo por ano. Em 2013, 27; em 2014, 12. Este ano, o número vai em oito. Mas não são os números que importam, aliás estes só incluem pessoas sinalizadas por instituições. O que interessa é saber as condições e as razões em que estas mortes ocorreram. Eles sentem que não são tratados como iguais em instituições ou hospitais.

Quando passa pela segurança, Celina Silva, 55 anos, admite: “É a primeira vez que entro neste espaço.” Já na sala do Senado, quando usou da palavra, António Barbosa, 52, pediu desculpa por estar “emocionado”: “É um dia especial na minha vida. Sinto-me emocionado por estar neste local. É aqui que os deputados gerem a política do país.”

Antes, Catarina Martins já tinha deixado clara a intenção do Bloco: “Consideramos importante que tenham voz aqui na Assembleia da República, o órgão de soberania.”

O grupo, que entrou através da escadaria principal, visitou a sala dos plenários, almoçou na cantina da Assembleia da República. Tirou fotografias, brincou com aqueles tectos altos e portas enormes: “Na próxima vida quero ser deputada”, ouve-se. José Soeiro, que os acompanhou, responde: “Pode ser já nesta vida.”

Celina Silva, que escreve poesia, vendeu os livros todos que trazia. Apesar das dificuldades por que já passou, e passa, escreve assim: “Amo a vida,/O bonito/ Quando eu partir,/ Não matem/ Para enfeitar meu lugar./ Adoro flores,/ Canteiros cheios de cor,/ Vida,/Perfume.”