11.8.15

Transplantes de medula. Procurar vida na vida do outro

in RR

Fátima sofria de um subtipo de síndrome mielodisplásica, doença em que a medula é incapaz de produzir células sanguíneas funcionais.

Em Portugal, a cada ano, fazem-se cerca de 80 transplantes de medula óssea de dadores sem laços familiares com o doente. Cada potencial dador traz novo alento àqueles a quem a doença não deixou outra opção senão a de procurar vida na vida do outro.

A sala de espera do serviço de transplantação de medula óssea do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto enche-se de rostos parcialmente escondidos. Sorrisos e angústias contidos pela máscara de protecção. A nu, apenas os olhares ansiosos de quem aguarda o resultado de mais umas análises.

As janelas, enormes, existem para estar fechadas. A indicação "Não abrir, por favor" é cumprida à risca. O contacto com o mundo acontece através de vidros, telemóveis, máscaras e desinfectantes. Ao longo de cerca de um ano são muitas as restrições para quem é alvo de um transplante de medula.

Sérgio e Fátima conhecem bem esta realidade. Apesar da vida em clausura, consideram-se "sortudos" por terem encontrado um dador compatível que lhes trouxe a esperança de um futuro.

Da doença ao transplante
Sérgio é estudante de Engenharia Ambiental. Durante o Verão do ano passado, começou a sentir-se cada vez mais cansado. Atribuía a culpa ao excesso de trabalho (trabalhava num bar). Entretanto, somaram-se outros sintomas. A palidez e o cansaço muscular excessivo levaram-no ao médico. Fez exames e na véspera do aniversário recebeu "uma prenda bonita", como lhe chama: Sérgio descobriu nesse dia, 22 de Setembro, que tinha leucemia. Fazia 22 anos no dia seguinte.

Entre as sessões de quimioterapia e os internamentos que se seguiram, o que mais o assustou foi a ideia de fazer um transplante de medula. O transplante em si nem era o problema, já que "é apenas um saco de soro". O que preocupava verdadeiramente Sérgio era "o que vinha depois, os efeitos que tinha e o facto de poder rejeitar".

Todos os anos surgem cerca de mil novos casos de leucemia em Portugal. Sérgio foi um deles

Fátima também ficou receosa quando a aconselharam a fazer um transplante. Na altura, confessa, não sabia "nada, nada, nada" sobre transplantes. Com anemias sucessivas que não respondiam à medicação, há vários anos, a educadora de infância de 50 anos descobriu, após um exame mais exaustivo, que sofria de uma síndrome rara que poderia evoluir para leucemia. Sofria de um subtipo de síndrome mielodisplásica, doença em que a medula é incapaz de produzir células sanguíneas funcionais

Como forma de prevenção, optou pelo transplante. "Ou fazia ou corria o risco de ficar com leucemia e já não tinha hipótese", desabafa.

A procura pelo dador compatível
Fátima depositou a esperança de encontrar um dador compatível no único irmão, já que a probabilidade de dois irmãos serem compatíveis é de aproximadamente 25%. Após algumas análises sanguíneas, soube que ele poderia ser a sua cura. Os olhos sorriem enquanto conta: "Foi aqui um turbilhão na minha cabeça, eu não sabia se havia de chorar, se havia de rir, porque não estava à espera, não estava à espera que ele fosse compatível."

Já Sérgio tem duas irmãs da parte da mãe e um irmão da parte do pai. Porém, explica, "meio-irmão não dá". A alternativa seria o recurso ao Registo de Dadores Voluntários. Nunca duvidou que surgisse alguém compatível, mas acreditava que o processo iria demorar "para aí dois anos, dois anos e meio".

No entanto, em apenas dois meses a boa-nova chegou: tinha sido encontrado um dador compatível com Sérgio. "Foi espectacular!", confessa. E considera-se ainda mais "sortudo" por ter encontrado um dador de nacionalidade portuguesa, uma vez que "há mais probabilidade de não rejeitar o transplante".

O Registo Nacional de Dadores Voluntários de Células de Medula Óssea é considerado o segundo melhor da Europa e o terceiro melhor, por milhão de habitantes, a nível mundial. O director do serviço de transplantação do IPO Porto, António Campos Júnior, realça, no entanto, que é preciso ir arranjando sempre "gente novapara repor aqueles que saem".

Actualmente, o registo conta com cerca de 300 mil inscritos. Desses, por ano, à volta de 100 são mobilizados para fazer uma dádiva.

Assim aconteceu com Cláudia, 25 anos, que se inscreveu como dadora potencial durante uma campanha de recolha na universidade. Três anos depois ligaram-lhe do IPO: havia a possibilidade de ser compatível com alguém. "Eu tinha a esperança de ser chamada, porque a intenção é sempre ajudar alguém, mas na altura disseram-me que a probabilidade era mesmo pequena, então, não estava à espera", admite.

Depois de fazer análises mais detalhadas, foi dada como certa a compatibilidade com o doente. Seguiu-se um "check-up básico" para verificarem as condições de saúde de Cláudia e o agendamento da doação.

"Qualquer problema é muito insignificante ao lado da vida de uma pessoa"
Cláudia compareceu no dia marcado. Tinha curiosidade em conhecer a pessoa que iria receber a sua medula, gostava de lhe poder desejar "tudo de bom". Porém, não houve qualquer contacto, nem houve, sequer, qualquer troca de informação.

Campos Júnior esclarece que, "por lei, é obrigatório que a dádiva seja feita em sistema de duplo anonimato". Ou seja, nem o dador sabe para quem dá, nem o receptor sabe quem deu.

A partir do momento em que é comprovada a compatibilidade, o dador passa a ser "apenas um número", diz Cláudia. E, para evitar troca de informação, o hospital está "como que dividido": "Os que tratam o doente não sabem de quem eu sou [dadora], não lidam comigo; e os que tratam o dador não sabem quem é o doente."

A doação aconteceu numa sala junto com outros dois dadores. Cláudia retrata o processo como "muito simples". A colheita dura cerca de duas horas e meia e é feita através de circulação extracorporal: "O sangue sai por um braço, passa numa máquina que retira a parte da medula óssea e volta a entrar no outro braço".

O processo de doação pelo qual Cláudia optou – a aférese – é "o mais seguro e o mais utilizado", tal como sublinha o director do serviço de transplantação do IPO. Existe, contudo, outra forma de doação possível, que passa pela colheita de medula através de punção dos ossos pélvicos. Realiza-se em bloco operatório e é mais complexa e arriscada, uma vez que implica anestesia geral.

De acordo com Campos Júnior, o médico responsável pelo programa de transplante dá indicação ao centro de colheita acerca do procedimento que prefere, em função da situação clínica do doente. No entanto, o dador pode respeitar o aconselhamento médico ou não. A escolha final cabe sempre a quem doa.

Campos Júnior alerta, porém, para os riscos de ambos os procedimentos. "Todos estes procedimentos não são de risco zero". Mesmo a aférese, o procedimento mais simples, pode gerar alguns problemas.

Apesar das possíveis complicações, em momento algum Cláudia sentiu vontade de recuar. Diz que teve sempre "sentido de missão". "Eu odeio agulhas e antes disto até desmaiava, mas tudo parece tão pequeno quando se pode ajudar a salvar a vida de alguém. Qualquer problema é muito insignificante ao lado da vida de uma pessoa".

Nova vida dentro de uma embalagem
Fátima recorda-se bem do dia em que recebeu o transplante. O irmão doou de manhã, ela recebeu à tarde. Acordou a chorar, emocionada, mas depois passou-lhe. "Foi o dia em que estive mais bem-disposta, e foi assim uma paz. Tinha a cabeça vazia, parecia que estava no céu. Não tinha dores, não tinha nada, não custou nada."

Compara o processo a uma transfusão sanguínea. Eram "372 mililitros de células" que, aos olhos de Fátima, tinham "uma cor muito bonita, uma cor de tijolo, não era a cor de sangue". Esteve deitada, a conversar com o enfermeiro, enquanto recebia o conteúdo daquela embalagem cheia de células e esperança.

Sérgio desmistifica o processo de transplantação: "As pessoas não se deviam assustar tanto". O transplante demorou apenas 20 minutos, "a fazer soro e a ver o canal Odisseia". A ansiedade, contudo, foi inevitável. Afinal, o que o assustava era "o que vinha depois".

Isolados do mundo
Após o transplante, o sistema imunitário do doente fica gravemente comprometido. O risco de contrair infecções obriga o transplantado a ficar em isolamento.

Durante um mês e meio, Sérgio permaneceu fechado num quarto do IPO, com visitas condicionadas. "As pessoas têm que se vestir com o material todo, tirar a roupa toda e é tudo muito bem desinfectado. Há pessoas que só podem falar através do vidro." Para Sérgio, a pior parte de todo o tratamento, "pior que os sintomas da quimio e do transplante”, é mesmo o isolamento.

Fátima concorda. Confessa que o isolamento foi o que lhe "custou mais". "As pessoas entram com máscara, todas tapadas, nós só vemos os olhinhos e ouvimos a voz, isso fazia-me muita confusão", desabafa.

Durante o internamento, recebeu apenas o marido e a filha no quarto. Explica que tinham de entrar à vez. As restantes visitas ficavam "do lado de fora", e falavam através de um intercomunicador. "Psicologicamente, temos de estar muito bem preparados para entrar num isolamento daqueles."

Sérgio conta que, após a alta hospitalar, a clausura perseguiu-o até casa. Tinha de ficar fechado no quarto e ter, de preferência, uma casa de banho só para ele. A limpeza de toda a casa também tem de ser constante e minuciosa.
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Fátima conta ainda que só recebe visitas de familiares, e logo de seguida a mãe "passa o paninho no chão" nas zonas por onde atravessaram. O contacto com os amigos tem sido via telefónica, para a "resguardar".

No que respeita à alimentação, a palavra "cautela" é elevada a outro nível. A comida não pode ficar exposta durante muito tempo, explica Sérgio. "Abrindo hoje uma melancia, amanhã já não a posso comer, por exemplo". Fátima também teve de readaptar as suas rotinas de preparação de alimentos. Nenhum pormenor pode ser descurado.

Ao longo de um ano, os transplantados não podem frequentar sítios fechados, como cafés ou centros comerciais, que são potenciais focos de infecção para o seu sistema imunitário enfraquecido. No entanto, de entre todas as restrições, para a educadora de infância a mais penosa é estar impedida de trabalhar durante um ano. "O estar em casa custa-me, eu era uma pessoa muito activa, trabalhava com 20 a 25 crianças das 9h00 às 17h00".

Acompanhamento vitalício
Transplantados recentemente, Fátima e Sérgio vão ao IPO do Porto duas vezes por semana.

Fátima fica "muito ansiosa" na noite anterior às consultas. São as únicas vezes em que sai de casa. De máscara, sempre, para se proteger. Primeiro, vai ao gabinete de enfermagem colher sangue para análise. Depois, aguarda pela consulta médica. Aí saberá o resultado das análises, que ditam aquilo que poderá ou não fazer. Na consulta seguinte, o ciclo repete-se.

As consultas têm uma frequência de duas vezes por semana nos três primeiros meses após o transplante. Entretanto, até aos seis meses, realizam-se semanalmente. Depois, até perfazer um ano, acontecem quinzenalmente. A partir daí, admite Campos Júnior, "depende da forma como o doente estiver".

O director do serviço de transplantação refere ainda que, por norma, ao fim de um ano a maioria dos transplantados já se consideram "com grande probabilidade de estar curados". Contudo, serão seguidos em consultas periódicas até ao resto da vida.

Sérgio aguarda com ansiedade por Março de 2016, período em que completará um ano de transplante e em que irá deixar de tomar a maior parte dos medicamentos. Mas sabe que nunca poderá respirar totalmente de alívio. "Vou ter de ter sempre atenção, fazer exames pelo menos duas vezes por ano. Vai ter de ser porque pode voltar a aparecer."

Apesar de todos os condicionamentos, Sérgio encara este ano como a oportunidade de um "início novo". E remata: "Eu se calhar andava muito parado no último ano antes da leucemia e isto ajudou-me a acordar. Ou seja, agora é preparar-me para o resto que tenho pela frente."