3.9.15

Manuais escolares: correr meio mundo para não ter de os comprar

in O Observador

É preciso disciplina. É preciso cuidado com os livros durante o ano. Há famílias que não desistem. E poupam centenas de euros em manuais escolares. Onde é que os encontram? Em floristas ou mercearias.

São pais, têm filhos em idade escolar, por vezes mais do que um, e, todos os anos, entre o mês de agosto e o começo de setembro, deixam de ser pais, tornam-se “acrobatas” de ocasião, verdadeiros “contorcionistas” do orçamento familiar, quando chega a hora de comprar os manuais escolares. A despesa é tanto maior quanto maior é impossibilidade de reutilizar livros, ora de filhos mais velhos, com pouca diferença de idade, ora de amigos, de amigos de amigos, até de bancos de livros. De tudo vale para cortar nas despesas, mas, com as sucessivas edições de manuais, ano após ano, com alterações que, dizem os pais, “são de pormenor”, torna-se uma tarefa hercúlea encontrá-los a custo zero – não desespere já que há um mapa mais abaixo.

Filipe Reinaldo, de 52 anos, e Isabel, a mulher, de 50, são membros da APFN, a Associação Portuguesa de Famílias Numerosas. Filipe e Isabel têm sete filhos, todos em idade escolar — com exceção da filha mais nova, de apenas cinco anos –, e as despesas na educação são imensas, todos os anos, sobretudo com os livros. Três dos filhos são universitários, maiores de idade, e o custo, aí, é menor, e ronda os 500 euros no total dos três. Os restantes estão no 2.º, 8.º e 12.º anos, com 7, 13 e 16 anos, respetivamente. Vivem em Linda-a-Velha, no concelho de Oeiras, e é lá, nos bancos de livros da vizinhança, que procuram os manuais em falta.

“Houve anos em que fiz as contas ao que ia gastar logo no início e, em média, ia gastar uns 700 ou 800 euros. Cheguei a setembro e, feitas novamente as contas, só gastei 150 euros. O ano passado, que seria um ano problemático, em que ia gastar um fortuna por causa das alterações de livros, acabei por gastar cerca de 250 euros. Desde que não haja, como há, uma rotação constante dos livros, consegue-se, garanto, ter os filhos a estudar até ao 12.º ano sem ter que comprar um livro que seja”, conta Filipe, o pai. Mas nem sempre são livros fáceis de encontrar ou de reutilizar.

Há que procurá-los em mais do que um sítio, há que perceber se o livro, mesmo que com um título ou uma encadernação diferente, serve ou não àquele ano, e, mais difícil, há que apagar, com borracha, todos os gatafunhos que venham no livro. O que me exige muito tempo. É que as editoras fazem uso de um papel especial, meio lustroso, que, mesmo que escritos a lápis, as páginas ficam marcadas – e só a muito custo se limpam.”

A primeira fase da reutilização dos livros, lembra Filipe, não começa com a ida aos bancos, mas em casa. “Nós sempre os educámos, sobretudo aos mais velhos, que têm uma diferença curta de idades, para que não escrevessem nos livros, visto que os livros de um podiam ser reutilizados por outro. Essa sempre foi a regra cá em casa. Mas a nossa luta não era só essa. A nossa verdadeira luta, uma luta do ‘gato e do rato’, sempre foi com as editoras, que estavam – e continuam a estar – sempre a fazer mudanças nos livros, aproveitavam os pretextos todos para os mudar. Mas a verdade é que, como as alterações não eram de fundo, só mudavam um capítulo ou outro de lugar, sempre consegui aproveitar os livros. Mas foi uma luta para que a escola os aceitasse.”

Henrique Trigueiros Cunha é o porta-voz do Reutilizar, um movimento, nacional e privado, pela reutilização dos livros escolares. “Como surgiu o Reutilizar? Eu diria que o primeiro banco de livros escolares nasceu espontaneamente. Eu sou explicador de Matemática e sempre incentivei os meus alunos a que deixassem comigo os livros de que não precisavam mais, para que eu os entregasse a quem deles precisasse no ano seguinte.” Em meados de 2011, Henrique decidiu utilizar o Facebook para criar um banco que não fosse circunscrito aos seus alunos. Poucos meses depois a rede cresceu, cresceu tanto, que se alargou ao país inteiro, com bancos em locais que pouco ou nada estão ligados ao ensino, como drogarias, floristas, mercearias ou supermercados. Hoje são 192 bancos, em 19 distritos – e há oito em vias de serem abertos.
Gastar, gastar e nunca poupar

Desde 2006, os manuais têm um período de vigência de seis anos. Contudo, este tempo pode, por decisão do Ministério da Educação, ser reduzido. Foi o que aconteceu nos últimos três anos letivos, anos em que a revisão dos programas ou das metas curriculares obrigou à atualização sucessiva dos manuais. Em 2015/2016, a história repete-se: a maioria das disciplinas do 9.º e 12.º anos vão ter manuais diferentes dos do ano anterior; no 10.º também foram adotados outros títulos para as disciplinas de Português, Física e Química A, Matemática A, Matemática B e Matemática Aplicada às Ciências Sociais.

No ensino básico, do 1.º ao 4.º ano, a despesa é naturalmente mais baixa, mas no 3.º ano, a partir deste ano letivo de 2015/2016, o valor sobe, uma vez que é necessária a compra de um novo manual, o de inglês, disciplina que passará a ser obrigatória – em 2016/2017 será obrigatória, também, no 4.º ano do ensino básico. A despesa das famílias atinge o seu pico no 7.º ano do ensino básico, ano que vão gastar, em média, 252 euros na compra de dez manuais. O valor só volta a ultrapassar a barreira dos 200 euros no 10.º (251 euros) e 11.º anos (241 euros), decrescendo para 153 euros no último ano do ensino secundário. A tudo isto acresce, como sempre, o custo dos materiais escolares, sobretudo nas disciplinas técnicas.

Manuais-escolares

Por outro lado, o preço dos manuais escolares subiu uma média de 10,4 por cento desde o ano letivo de 2012/2013. Na altura, o Governo assinou uma convenção com os livreiros, que determinou um aumento fixo de 2,8 por cento ao ano. A convenção foi assinada pela Direção-Geral das Atividades Económicas, que é tutelada pelo Ministério da Economia, e pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL). A Comissão do Livro Escolar da APEL não participou nesta reportagem, uma vez que a Associação se encontra de férias. O Ministério da Educação, por sua vez, optou por não responder às questões enviadas pelo Observador.

A escolha de quais os livros escolares que devem ser adotados em cada ano lectivo tem um enquadramento jurídico bastante rigoroso, definido pela Lei N.º 47/2006. Os currículos, os programas e as metas curriculares são homologadas pelo Ministério da Educação. Com base nesses programas, os editores produzem os livros escolares e divulgam-nos junto das escolas e professores durante um período regulado, submetendo os livros à adoção dos docentes. O período de adoção, também definido pelo Ministério da Educação, acontece no 3.º período letivo e tem a duração de quatro semanas, permitindo que os professores analisem com rigor os livros, aplicando os critérios de avaliação que estão publicados em despacho próprio, para depois preencherem, online, as grelhas de avaliação, selecionando os manuais de acordo com o projeto educativo da sua escola.

“A adoção dos manuais realiza-se todos os anos, mas isso não significa que todos os manuais mudem ano após ano, como por vezes se diz erradamente. Em cada ano letivo são adotados livros para determinado ano – ou determinados anos – de escolaridade numa lógica sequencial. Por exemplo, se a adoção é feita ao nível do 1.º ano de escolaridade, no ano letivo seguinte adotar-se-ão os livros do 2.º ano e assim sucessivamente, sendo que os manuais escolhidos vigorarão por seis anos”, explica a Porto Editora.
Mesmo com mudanças nas metas, os livros podem ser reutilizados

Teresa Sobral é atriz, mas é também mãe, e todos os anos em agosto traz, de cena para a vida, a tragicomédia shakespeareana que é a compra e troca de livros. Teresa tem dois filhos em idade escolar, um com 14 anos, no 10.º ano, e outro na faculdade, com 21. Nunca conseguiu, até pela diferença de idades que os separa, aproveitar os livros do filho mais velho para o mais novo. Tanto com um como com outro, sempre deitou contas às despesas, agosto após agosto, e, antes como agora, com as sucessivas revisões curriculares, com as sucessivas mudanças de livros, sempre gastou “uma fortuna”, e sempre teve dificuldades em encontrar livros para trocar.

Mudam-se as páginas, muda-se a ordem dos conteúdos, mais uma imagem para aqui, mais outra para ali, e o livro, que é o mesmo, passa a ser ‘novo’. Se isto não fosse um negócio, o problema já se tinha resolvido há muito tempo.” Teresa Sobral, Lisboa

“O dinheiro é o problema. Isto é um negócio lucrativo, muito lucrativo. São milhares e milhares de crianças e jovens em idade escolar, pais a comprar milhares e milhares de livros, todos os anos, e mais o material, e mais isto e mais aquilo, e alguém tem que lucrar com tudo isto, que são as editoras. Mudam-se as páginas, muda-se a ordem dos conteúdos, mais uma imagem para aqui, mais outra para ali, e o livro, que é o mesmo, passa a ser ‘novo’. Se isto não fosse um negócio, o problema já se tinha resolvido há muito tempo”, lamenta.

Uma crítica que o porta-voz do Reutilizar subscreve, afirmando que as mudanças que surgem nos manuais, de um ano para o outro, são “uma aldrabice”. “Muitas vezes, trata-se de repaginações dos livros, não de alterações aos conteúdos. É um negócio, um negócio que movimenta cerca de 200 milhões de euros todos os anos, são empresas privadas, cujo objetivo é o lucro – o que eu compreendo e não censuro –, mas com este negócio, está a ignorar-se a lei e, pior, a lesar as famílias.”

O porta-voz do Reutilizar considera que os pais estão “baralhados” com a sucessiva mudança das metas curriculares. Há manuais que, denuncia Henrique Trigueiros Cunha, apesar das mudanças que o Ministério da Educação impôs, podem ser reutilizados. “Nós recebemos, no Reutilizar, uma troca de mensagens entre um encarregado de educação e a Direção-Geral da Educação, onde a Direção-Geral diz, claramente, que os livros anteriores às metas curriculares, e os livros posteriores, onde não houve alteração de programas, são livros que podem coexistir na sala de aula. E acrescenta que essa coexistência é da competência das escolas e dos professores. Muitas vezes as editoras mudam os títulos e os códigos ISBN [o número oficial de registo], as escolas deixam de adotar os manuais anteriores, e os pais são lesados, gastando dinheiro em livros inutilmente.”

O grupo Porto Editora, que detém, por exemplo, a chancela Bertrand e o site Wook, explica que foi o Ministério da Educação que “entendeu rever alguns programas, introduzindo novas Metas Curriculares e, na grande maioria dos casos, esse processo teve como consequência alterações em mais de 50 por cento das páginas dos manuais, com óbvio reflexo na organização dos mesmos. Em nenhum caso se verificou haver revisões de pormenor.” Por outro lado, sublinha a Porto Editora, o calendário de introdução destas mudanças “foi articulado entre os editores e o Ministério da Educação, precisamente para minorar o impacto junto das famílias. E se é certo que, em alguns casos, houve a redução da vigência de manuais, outros há em que se verifica a extensão desse período, com livros a permanecerem em vigor durante sete, oito e nove anos, como há dias informou a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros.”
Regra número 1: não escrever nos manuais

Teresa já teve os filhos em colégios privados e em escolas públicas. O problema é o mesmo de um e de outro lado. “O meu filho mais novo estudou, até hoje, que se mudou para a António Arroio, num colégio, e aí é muito, muito difícil aproveitar livros de colegas mais velhos, porque os livros estão sempre a mudar. Em setembro gastava sempre à volta de 500, 600 euros. Mas desde há três ou quatro anos, o que eu tento é trocá-los: os que tenho, entrego-os, e trago livros de amigos ou de bancos. Claro que, mais uma vez, os problemas são as novas edições que nos impõem.”

A solução, acredita Teresa, é mesmo a reutilização. Mas uma reutilização da responsabilidade do Estado, que se estenda ao país inteiro. “É possível reaproveitar os livros. Primeiro, é importante educá-los, aos alunos – mas também aos professores –, que não se deve escrever nos livros, e, se o fizerem, que o façam a lápis, que é simples de apagar. Ou usem marcadores, post-it, o que for. Depois, se todas as escolas tivessem um banco de livros, os alunos mais velhos, que transitam de ano, deixavam os livros para os alunos mais novos, que vêm do ano anterior, e isto resolvia-se”, garante.

Na última reunião com o Ministério, o que nós propusemos foi a criação de cadernos escolares, um formato diferente do livro atual, e que, quando surgisse uma alteração nos programas, alterando-se um caderno, não se alteraria, como hoje, o livro inteiro. E um caderno é sempre mais barato que um livro.” António Parente, vice-presidente da CNIPEE

António Parente, vice-presidente da Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação (CNIPEE), garante que a confederação tem tentado promover os bancos, mas que é um trabalho inglório. “As nossas associações têm promovido bancos de livros. O problema é que, volta e meia, se alteram os livros, pequeníssimas alterações, onde muitas vezes o livro é o mesmo, mas as editoras mudam os conteúdos de página, e, em sala de aula, quando o livro está dentro da meta curricular, mas é diferente na paginação, um aluno tem um, outro aluno tem outro, diferente, e tudo isso vai alterar e atrasar o funcionamento da aula. Nós acreditamos que as editoras o fazem com a melhor das intenções, mas são as famílias, que andam a poupar os tostões para sobreviver, as mais afetadas com isto.”

António concorda com o parecer do Conselho Nacional de Educação.“Um organismo, público, um banco nacional de livros usados, que congregue todos os bancos, privados e de escolas públicas, que hoje existem por aí, seria uma boa solução.” Mas acrescenta outra: “Na última reunião com o Ministério, o que nós propusemos foi a criação de cadernos escolares, um formato diferente do livro atual, e que, quando surgisse uma alteração nos programas, alterando-se um caderno, não se alteraria, como hoje, o livro inteiro. E um caderno é sempre mais barato que um livro. O Ministério até se mostrou recetivo, mas, em ano de eleições, é impossível fazê-lo ou, sequer, pensar em fazê-lo.”

Outro problema que se levanta é o de que os livros, muitas vezes, são diferentes de escola para escola, mesmo entre escolas do mesmo agrupamento, o que dificulta a sua partilha e reutilização. “O ideal seria que a escolha dos livros fosse, se não nacional, distrital ou que se escolhesse o mesmo livro por concelho. Isso tornaria a troca de livros mais viável. Mas a verdade é que cada docente tem a sua opinião sobre qual é o melhor livro. Não podemos restringir a liberdade dos professores para escolher qual é o melhor livro para os seus alunos. As turmas, as escolas e os agrupamentos não são iguais, nem têm as mesmas necessidades de educação. Mas, felizmente, são cada vez mais as escolas que, no mesmo concelho, escolhem o mesmo livro. Em Castro Daire, Viseu, onde vivo, o manual é sempre o mesmo no concelho”, explica o vice-presidente da CNIPEE.

O presidente da Associação Nacional dos Diretores Escolares (ANDE) é da mesma opinião. “Anualmente, bem ou mal, concordemos ou não com isso, há vários livros que têm que ser escolhidos. Cada escola, cada agrupamento de escolas, é que, independentemente e de acordo com as normas legais, escolhe os livros. O bom senso diz que o deveriam fazer em articulação com os agrupamentos mais próximos, mas, não sendo lei, isso nem sempre acontece. Se acontecesse, os bancos de livros usados funcionariam, naturalmente, melhor – quer os bancos de livros nas escolas, para os alunos beneficiários de acão social, e que são responsabilidade do Estado, quer os restantes bancos de livros, privados, que existem no país”, refere Manuel Pereira.

A lógica de construção dos manuais choca com a reutilização dos mesmos. O livro está pensado, todo ele, para a utilização própria e para deixar de ser usado. Os livros, construídos como estão, não duram, nunca, os seis anos do período de vigência.” Manuel Pereira, presidente da ANDE

Mas a política da recolha de livros usados, sendo socialmente aceitável, vem chocar com um problema, diz o presidente da ANDE, que é “cultural”. “Primeiro, é prática que os alunos, por vontade dos mesmos, no estudo em casa, nas próprias aulas, escrevam, rasurem, sublinhem os manuais, e essas marcas de uso, muitas vezes, impossibilitam a sua entrega a novos alunos. Depois, a lógica de construção dos manuais choca com a reutilização dos mesmos. E aqui é um problema das editoras. O livro está pensado, todo ele, para a utilização própria e para deixar de ser usado. Os livros, construídos como estão, não duram, nunca, os seis anos do período de vigência que o Estado propõe. Os alunos, sobretudo no básico, e isto é cultural, dão muita utilização aos manuais, escrevem, tomam notas à margem, sublinham tudo, e fazem-no porque os espaçamentos para escrever estão lá, quando não deviam estar”, critica.

Os grupo editorial Leya, que detém, por exemplo, as chancelas ASA e Texto, não respondeu em tempo útil à solicitação do Observador para participar nesta reportagem.
Livros por alimentos: em Matosinhos é possível

Não é caso único, há outros concelhos no país que têm bancos de livros, mas a Câmara Municipal de Matosinhos é um exemplo de sucesso: desde 2012, quando a recolha, reutilização e reciclagem de manuais começou na Casa da Juventude, o município já entregou 98.760 manuais escolares, tendo chegado a 18.159 famílias. Este ano, entre junho, julho e agosto, foram mais de 8 mil os livros entregues.

“A recolha e o banco [de livros] surgiram em 2012. E surgiram, infelizmente, decorrentes da crise que estamos a viver. Nós, na Casa da Juventude, em Matosinhos, até por termos salas de estudo lá, recebíamos muitas solicitações de famílias que não tinham como adquirir os manuais. Há, portanto, uma vertente social, como resposta às necessidades das famílias, mas também há uma vertente ecológica: como há livros que não são reutilizáveis, por cada tonelada desses livros entregue para reciclagem, o Banco Alimentar Contra a Fome recebe 100 euros de alimentos”, explica Lurdes Queirós, a Vereadora da Ação Social na Câmara Municipal de Matosinhos. Em 2014, a município entregou 10 toneladas de manuais escolares para reciclagem.

Há por parte da comunidade escolar, professores e alunos, uma certa consciencialização para que, usando os livros, não os rasurem, não escrevam neles, para que estes venham a ser entregues e reutilizados.” Lurdes Queirós, Vereadora da Ação Social na Câmara Municipal de Matosinhos

O banco não funciona só para os munícipes de Matosinhos. A Casa da Juventude é procurada por pais e encarregados de educação dos concelhos vizinhos, como o Porto, Gondomar, Maia, Valongo, Vila Nova de Gaia, São João da Madeira ou Vila do Conde. O trabalho da autarquia é de apoio às famílias, mas também de sensibilização.

“O banco de livros da Casa da Juventude foi criado numa parceria com o movimento Reutilizar. E, desde o começo, nós quisemos sensibilizar as famílias para a entrega de livros. Já foram recolhidos 39.906 volumes. A sensibilização é feita no site da autarquia, também escola a escola, e em articulação com as Juntas de Freguesia, que já faziam a recolha de livros e com quem nós trabalhamos em rede. A verdade é que, por parte da comunidade escolar, professores e alunos, há uma certa consciencialização para que, usando os livros, não os rasurem, não escrevam neles, para que estes venham a ser entregues e reutilizados”, conclui.
Partilha de livros nas escolas: prevista na lei desde 2006

“O que está em causa, em Portugal, é o incumprimento da Constituição e de várias leis da República. A incumbência do Estado é assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito a todos os alunos do ensino público. Mas não o faz. Se um aluno é obrigado a ter livros escolares e eles não são gratuitos, então o ensino não é gratuito”, critica Henrique Trigueiros Cunha. E é por isso que o Reutilizar vai entregar no dia 15 de setembro, na Provedoria de Justiça, uma queixa contra o Estado, com mais de cem denúncias, a reclamar o cumprimento da lei que estabelece um prazo de seis anos de vida para cada um dos manuais escolares, uma lei que, diz, “não é cumprida”.

A solução, crê o movimento, é a criação de um sistema de partilha de livros em cada escola, acessível a todos os alunos, “uma solução que está prevista na lei desde 2006, e que terminaria com este encargo para as famílias.” Por três vezes, em 1989, 2006 e 2011, o Conselho Nacional da Educação (CNE), um órgão consultivo do Governo e da Assembleia da República, pronunciou-se neste sentido, “mas todos os seus pareceres foram ignorados”, lamenta o porta-voz do Reutilizar. O Observador tentou, sem sucesso, obter uma entrevista com David Justino, presidente do CNE, que se encontra de férias. Uma fonte ligada ao órgão adiantou apenas que “os pareceres do Conselho Nacional de Educação não são de caráter vinculativo”.

A ideia [do empréstimo de manuais] parece interessante numa primeira análise, mas põe em causa princípios fundamentais do nosso sistema educativo, como o da igualdade de oportunidades. Se a um aluno só for proporcionado o acesso a manuais emprestados, será que podemos dizer que tem as mesmas oportunidades do que os alunos que podem adquirir os livros e deles disporem sem constrangimentos? ” Porto Editora

O grupo Porto Editora diz que “são compreensíveis” todas as iniciativas de economia de custos por parte das famílias, embora possam originar “situações de discriminação” entre os alunos que usam livros novos e alunos com livros usados. “Há vários tipos de sistemas de empréstimo de manuais em vigor em diferentes países europeus, com predominância pelo que privilegia a aquisição dos livros pelas escolas e subsequente empréstimo aos alunos, com vigência dos manuais entre cinco a sete anos. Contudo, se é verdade que os sistemas de empréstimo de manuais permitem economia de custos às famílias, a implementação e gestão desses sistemas tem custos estruturais muito significativos. Sem esquecer que as famílias, deixando de adquirir os manuais, continuam a ter de comprar outros livros de apoio ao estudo com que tentam compensar a falta dos manuais em casa”, defende a Porto Editora.

Há, ainda, uma outra situação que o grupo editorial considera “particularmente relevante” e que, regra geral, diz, “não é considerada” na reflexão sobre este assunto: o eventual impacto negativo que o sistema de empréstimo de manuais pode ter junto dos alunos mais desfavorecidos. “Se a estes só for proporcionado o acesso a manuais emprestados, será que podemos dizer que têm as mesmas oportunidades do que os alunos que podem adquirir os livros e deles disporem sem constrangimentos? A verdade é que, em contextos mais desfavorecidos, os manuais escolares são praticamente os únicos livros que entram em algumas casas. Ora, se lhes retirarmos este apoio, permitindo apenas um acesso condicionado aos livros através do empréstimo, poderemos estar a aprofundar a desigualdade de oportunidades e, não menos grave, a contribuir para a estigmatização destes alunos face aos que têm livros próprios. Ou seja, uma ideia que parece interessante numa primeira análise pode, afinal, pôr em causa princípios considerados fundamentais do nosso sistema educativo como o da igualdade de oportunidades”, conclui, em resposta ao Observador, a Porto Editora.

A verdade é que, desde 2013/2014, o Estado criou um banco de livros, da responsabilidade das escolas, mas ao qual só podem recorrer os agregados familiares com rendimentos mensais iguais ou inferiores ao salário mínimo nacional. Desde então, a comparticipação na compra de manuais passou a ser garantida só nos casos em que não existam livros disponíveis naqueles bancos. “Os partidos, quando são oposição, são favoráveis ao cumprimento da lei. Uma vez no Governo, como que se esquecem da lei. Mas o ministro Nuno Crato não se esqueceu da lei, cometeu foi um erro na interpretação desta ao criar, a partir de 2013, bolsas de manuais escolares destinadas, unicamente, aos alunos que são beneficiários de ação social escolar. O ministro da Educação fez uma infeliz associação da reutilização com a pobreza. A necessidade de legislar sobre os manuais escolares fê-lo errar”, aponta Henrique Trigueiros Cunha.
Continuar a ler