23.10.15

Arrastões e o arbítrio do Estado que estigmatiza a pobreza

Pedro Estevam Serrano, In Carta Capital

Ação da PM-RJ corrobora a existência de um estado de exceção permanente no qual a pobreza é reprimida

Nos últimos dias, o Rio de Janeiro bateu recordes de altas temperaturas, aumentando a concentração de banhistas nas praias, sobretudo nas da zona sul, e a preocupação dos agentes de segurança em relação à ocorrência de novos arrastões. Sob o pretexto de contê-los, a Polícia Militar vinha adotando um procedimento tão absurdo quanto arbitrário: interceptar ônibus provenientes dos subúrbios para revistar e impedir “suspeitos” de chegar até as áreas nobres da cidade.

O critério para decidir quem poderia ou não seguir viagem era o conteúdo da carteira. Quem não portasse dinheiro vivo, no entendimento dos policiais que realizavam as ações, era um assaltante potencial e, por isso, barrado. As blitze não resultaram em provas contra os “suspeitos”, com os quais não foram encontradas nem armas nem drogas.

No entanto, foram amplamente apoiadas por parte dos moradores dos tais bairros nobres, inclusive por grupos que vinham se organizando via redes sociais para “fazer justiça” – vide episódio da agressão por moradores que quase lincharam ocupantes de um ônibus vindo do subúrbio –, e só foram suspensas porque a Defensoria Pública entrou com pedido de habeas corpus preventivo, a fim evitar que jovens voltassem a ser recolhidos em coletivos ou impedidos de seguir viagem.

A reação do governador do Rio, então, afirmando que a justiça estava “engessando” o trabalho da polícia, não poderia ser mais infeliz.

É preciso que fique claro que, no plano jurídico-constitucional, no plano da legalidade, decidir quem pode ou não frequentar espaços públicos é um abuso e uma arbitrariedade. Mais do que isso: é uma conduta criminosa.

Segundo a nossa ordem jurídica, só há três circunstâncias que admitem a detenção de uma pessoa: flagrante delito, ordem judicial de prisão cautelar – em situações muito extremas – ou execução de prisão por condenação criminal transitada em julgado.

Deter alguém por critérios tão subjetivos quanto ter ou não dinheiro, cerceando seu direito constitucional de ir e vir, é uma ação explícita de abuso do agente do Estado, que deveria ser entendida como tal. No entanto, o que vemos recorrentemente é o uso da farda legitimar a repressão desmedida, travestida de medida de contenção.

Não houve, no caso em questão, atitude preventiva que justificasse a detenção de cidadãos que, ressalte-se, não estavam cometendo crime. Foi um atentado grave à cidadania e é emblemático que a sociedade permaneça silente e, mais do que tolerante, apoiando esse tipo de prática profundamente autoritária. Isso corrobora a existência de um estado de exceção permanente em nosso País, um estado que gere e reprime a pobreza, apoiada por parcela da sociedade incluída.

A detenção do pobre, negro, que não detém os signos de pertencimento a um determinado segmento social, é aceita e até aplaudida, mesmo quando não há uma suspeita real, por diversas razões. O discurso de criminalização da pobreza, tão presente na mídia de massas e nas telenovelas – onde o bandido é quase sempre o negro, pobre, morador de favela – não só reforça esse estigma e preconceito, como também justifica que o indivíduo associado à pobreza seja tratado como inimigo, como alguém sem direitos.

Quando o Estado age acima da lei e intensifica a crença de que tudo é permitido para supostamente combater arrastões ou outros eventos violentos, ao mesmo tempo alimentando o terror na população, que por sua vez reage muitas vezes de forma irracional e desproporcional, perde-se a chance de avançar no debate sobre as verdadeiras causas da violência – a deficiência educacional e a pouca oferta de lazer e equipamentos de cultura nas zonas afastadas da cidade.

Perde-se também a oportunidade de cobrar desse governo que só reprime uma polícia que aja com mais recursos de tecnologia, monitoramento e inteligência, em vez da usual truculência. Perde-se muito e o tempo todo. E o verão ainda nem começou.