29.10.15

Em Portugal, não se faz outra coisa

Lucy Pepper, in o Observador

Limitar uma pessoa a um conjunto pequeno de competências durante uma vida inteira é entorpecer essa pessoa. Mas em Portugal, o ideal é esse: cada um só pode fazer aquilo para que estudou na escola.

A minha filha mais nova começou o 9º ano no mês passado. No fim deste ano letivo, terá de escolher a área de estudos (ciências, economia, humanidades ou artes) que vai seguir no 10º ano. A miúda já anda stressada com essa decisão, e entende-se.

Sempre me pareceu cruel obrigar crianças a ter de decidir o seu futuro tão cedo. Talvez convenha à gestão do sistema de educação, mas nem por isso deixar de ser uma imposição desumana sobre os mais pequenos. Eu tive de começar a tomar decisões sobre a minha educação com 12 anos. Com 12 anos era uma idiota. Quem quer dar esse tipo de responsabilidade a um idiota, embora essa responsabilidade diga respeito à sua própria vida?

Em Portugal, a pressão é ainda maior, porque aqui a mentalidade dominante é “se estudares para uma certa profissão, é essa a única profissão que podes exercer”. Por isso, optar por uma determinada área de estudos com 14 anos condena a criança a seguir essa área para sempre, para além do ensino superior.

Tem um diploma de arquitecto, tem de ser arquitecto. Tem um diploma de enfermeiro, vai ser enfermeiro. Tem um diploma de cozinheiro… etc., etc., etc. Nem pense em mudar de ideias. Está tudo decidido.

Ouvimos muitas pessoas queixarem-se de que não conseguem encontrar emprego na sua área de estudos, especialmente durantes estes dias de crise. Sim, custa decidir numa idade cruelmente jovem o que se quer fazer durante o resto da vida – apenas para descobrir depois que, afinal, não há nenhum emprego à espera. Lá vai ser preciso sair do país, ou optar por fazer estágios não pagos durante anos, ou então “fazer outra coisa”.

É “fazer outra coisa” que é um grande problema em Portugal. “Fazer outra coisa” não é uma opção aceitável e por isso pessoas de todas as idades preferem sair do país, levando os seus talentos e as suas capacidades, apenas porque seria impensável “fazer outra coisa” durante algum tempo.

astronaut

“Fazer outra coisa” é, estranhamente, anátema em Portugal. Estranho por que de tantas outras maneiras, Portugal é um país de desenrascanço e de pragmatismo. Mas “fazer outra coisa” cai em duas categorias complicadas. Por um lado, ninguém acha digno que quem tem certas habilitações tenha um emprego que não corresponda exactamente a essas habilitações; por outro lado, os portugueses acreditam que uma pessoa não pode saber fazer uma coisa sem, antes, ter tirado a respectiva licenciatura, mestrado e doutoramento. Isto é tão assim, que as poucas pessoas que conheço que, ao perceberem que não podiam progredir na carreira que tinham escolhido, ousaram “fazer outra coisa”, acabaram todas por ser desprezadas pelos seus antigos amigos de profissão, que acharam uma baixeza alguém “fazer outra coisa”. Em Portugal, é ainda raro que alguém trabalhe num bar enquanto estuda na universidade, como acontece em tantos outros países do mundo.

Isto é um disparate, por duas razões. Em primeiro lugar, porque não há nada mais digno do que fazer tudo o que é necessário para ganhar a vida. Em segundo lugar, porque qualquer pessoa pode aprender a fazer qualquer coisa enquanto trabalha. Limitar uma pessoa a um conjunto pequeno de competências durante uma vida inteira é entorpecer essa pessoa. Muito mais interessantes são as pessoas que já fizeram várias coisas ao longo da vida, que trabalharam num supermercado, e a seguir na NASA. Se eu tivesse algum dia de contratar empregados, contratava um autodidacta polímata, em vez de alguém que nunca deixou a sua zona de conforto. Afinal, porque desconfiamos nós dos políticos profissionais que nunca fizeram nada na vida senão politicar? Porque não têm experiência da vida ou, mais importante, das vidas dos outros. E porque é que seria diferente para os outros trabalhadores?

A par da falta de mobilidade social (veja a crónica anterior), há uma similar falta de mobilidade no mercado de trabalho em Portugal. Nestes dias perigosos que estamos a viver em Portugal, dias que ameaçam ficar cada vez mais perigosos, seja qual for o resultado da actual crise política, não devíamos pensar em nos tornarmos mais flexíveis dentro do país, a fim de evitar que mais pessoas tivessem de sair?

(Traduzido do original inglês pela autora)