23.11.15

Pobreza é “quando a criança não se sente de ninguém”

Andreia Lobo, in Educare.pt

Mais de 280 mil crianças vestem o pijama por uma causa

No Dia Internacional dos Direitos da Criança, o EDUCARE.PT falou com duas organizações de defesa dos direitos das crianças. Mostramos uma investigação que traz um novo olhar sobre a vinculação. Percebemos ainda, com estes testemunhos, o que falta nas políticas públicas dirigidas à infância.

Mais de 280 mil crianças, com idades entre os 12 meses e os 10 anos, saem hoje de casa vestidas com o pijama. Um ato “que significa carinho, cumplicidade e vida em família”, explica Manuel Araújo, presidente da Mundos de Vida, uma associação sem fins lucrativos, que promove o Dia Nacional do Pijama.

Todos os anos, a associação faz chegar às creches, jardins de infância e escolas do 1.º ciclo, que se inscrevem na iniciativa, um conjunto de materiais sobre os Direitos das Crianças para serem trabalhados em sala de aula, com o educador ou professor. A preparação começa em outubro e culmina neste dia, 20 de novembro, altura em que se celebram os 25 anos da assinatura da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Direito a crescer em família
O Dia Nacional do Pijama quer chamar a atenção para uma realidade dura e “que nada justifica” na sociedade portuguesa, sublinha Manuel Araújo: “Mais de 96% das crianças separadas dos seus pais estão anos a fio a viver em instituições. São 8172 crianças invisíveis que vivem longe do calor e do amor de uma família.”

“O sistema português criou uma cultura de institucionalização que não tem paralelo na Europa”, realça Manuel Araújo exemplificando que em Portugal apenas 4% das crianças separadas dos pais – por várias razões – vivem em famílias de acolhimento quando na Irlanda são mais de 90%.

Os pijamas servem não só para dar a conhecer esta situação como para “contribuir para uma mudança de mentalidades que ajude a desenvolver o acolhimento familiar de crianças”. Até à data a Mundos de Vida já colocou 118 crianças a viverem em famílias “num ambiente mais terno, seguro e positivo”, sublinha Manuel Araújo, apelando: “São precisas muitas mais!”

Por outro lado, salienta Manuel Araújo, importa não esquecer que “a pobreza continua a representar uma ameaça à infância”. Mas não apenas a falta de pão ou de casa. “O maior drama da pobreza acontece quando a criança sente que não é nada e quando não se sente de ninguém.”

Direito à felicidade
No mundo ocidental alguns dos direitos das crianças são quase dados como adquiridos. As sociedades foram assumindo muitas das funções que, no passado, estavam reservadas aos pais, como a educação. Ainda assim, “é na família que as crianças alfabetizam as suas emoções”, recorda o presidente da Mundos de Vida, acrescentando: “Neste domínio há muito a fazer para se cumprir a convenção internacional dos direitos da criança”. Que proclama que “uma criança tem direito a crescer numa família, num ambiente de felicidade, amor e compreensão”.

Numa altura em que Portugal e a Europa estão a postos para receber novos fluxos de refugiados, com um número significativo de crianças, o alto-comissário para as Migrações, Pedro Calado, reforça a ideia que “a qualidade de uma sociedade se mede também pela forma como defende as suas crianças.” E lança um apelo: “Há que salvaguardar os princípios fundamentais que nos regem, assegurando que todos podem ser crianças, independentemente da sua origem, cultura ou religião.”

Direito à brincadeira
Um estudo desenvolvido por investigadores portugueses trouxe novos conhecimentos sobre como as crianças estabelecem a confiança nos pais. Dito de outra forma, como criam com eles uma “vinculação segura”. “Há situações em que a criança fica alarmada e aprende que o pai e a mãe servem para proteger”, explica Marina Fuertes, investigadora da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto e uma das autoras do estudo.

Até agora sabia-se que os cuidados prestados eram importantes para criar estes laços. A novidade trazida por este estudo é que “não só na aflição, mas também durante a atividade de brincar se consegue estabelecer na criança a expectativa de que pode confiar nos pais”. Entre os participantes do estudo “as mães que passavam mais tempo a brincar com os filhos tinham muita maior probabilidade de obter relações seguras com eles”.

Quando está provado que as mães passam mais tempo a cuidar da criança – seja a preparar as refeições ou a dar banho – e menos a brincar e os pais o inverso, o que é preciso fazer? Marina Fuertes e a equipa que observou 82 bebés e respetivos pais durante dois anos respondem: “É preciso libertar as mães para que elas possam ser mais parceiras de brincadeira!”

Apesar dos resultados, Marina Fuertes reconhece a dificuldade dos pais em terem mais tempo disponível para o que o estudo mostrou ser mais importante. Sobretudo tratando-se das mães. “Há o trabalho, as horas passadas no trânsito e depois as tarefas domésticas para fazer e, no final, é difícil dizer à mãe, agora brinque com o seu filho e divirta-se!” Por isso, o repto “libertem-se!” “Com ajuda dos pais ou de outros, as mães precisam de arranjar tempo e disponibilidade emocional, porque não se vai brincar só por brincar.”

Não se julgue que cuidar da criança é mais importante do que brincar com ela, alerta a investigadora: “São dois direitos importantes. Mas nas sociedades muito industrializadas, muitas vezes não se faz apenas uma sopa, quase se faz um algoritmo para fazer a sopa”, ironiza. Nos países mais pobres, como os asiáticos, africanos e latino-americanos, Marina Fuertes testemunhou que a brincadeira assume grande importância. “Talvez por não poderem dar certos cuidados que se dão nas sociedades mais ricas”, admite.

No oposto, refere a investigadora, “a sociedade industrializada e estandardizada esqueceu as coisas mais simples”: “Sofisticamos as tarefas até não podermos mais”. Exemplos? “Há pais a fazerem grandes investimentos para os filhos terem roupas de marca, elevando o direito ao cuidado ao extremo, com consequências muito graves.”

Políticas para a infância
A pergunta é obrigatória neste Dia Internacional dos Direitos da Criança. Que políticas devemos esperar para a infância? Menos focadas na dimensão económica, critica Manuel Araújo. “Não se podem limitar a uma análise centrada em indicadores financeiros, do tipo montante do abono de família, gasto do país por criança nas escolas ou investimento na construção escolar.” E acrescenta: “Avaliar as políticas para a infância, pelo lado dos custos é um exercício pobre, pois é admitir que bastaria aumentar os orçamentos para melhorar os resultados”.

O presidente da Mundos de Vida está convencido de que “gastar mais não significa necessariamente fazer melhor”. Sugere, por isso, alguns aspetos que, no seu entender, “deviam ser centrais das políticas para a infância”. A começar pelo tempo e o papel das famílias na educação dos seus filhos. O que significa mais opções e liberdade sobre a forma como gostariam de os educar. “Tudo o que é único é redutor, como o livro único, a escola única, o programa único.”

Na área da educação, Manuel Araújo pede ainda que seja dada “primazia” ao primeiro ciclo, “onde as crianças passam demasiado tempo”, acrescenta. E, por fim, que se abandone o betão e a borracha para dar lugar à natureza. “Fala-se tanto de ambiente nas escolas e nunca as crianças estiveram tão longe de experimentar a natureza em primeira mão.”

Quando as crianças voltarem para casa, hoje ao final do dia, a maioria das mães, por instinto, talvez queira pôr logo o pijama na máquina de lavar. Vale a pena travar o impulso. E, numa brincadeira, ajudar a criança a sujá-lo um pouco mais.