21.4.16

De que dignidade falamos quando falamos de morte digna?

Eduardo Carqueja, in Público on-line

É pela anulação das diferenças do reconhecimento da dignidade de quem nasce e de quem morre que nos devemos bater.

Acompanhar e cuidar de pessoas em fim de vida significa mais que acompanhar e cuidar quem vive o seu tempo de morrer. Significa uma necessária e cuidada atenção a quem compartilha com estas pessoas todo esse tempo. Só assim se poderá falar de um verdadeiro respeito pela dignidade de quem morre e de quem fica. Sim, porque quer queiramos quer não, a morte e o tempo de morrer, não afecta somente quem morre, mas também as pessoas ao seu redor, nomeadamente família, amigos e conhecidos.

De facto, a petição para a “Despenalização da Morte Assistida” nascida do Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida, embora não sendo esse o objectivo, possibilitou o debate e mexeu com consciências que há muito se mantinham silenciadas sobre a problemática do morrer em Portugal. Não chega dizer que se morre mais nos hospitais do que no domicílio, não chega dizer que são necessárias mais equipas de cuidados paliativos, sejam elas hospitalares ou domiciliares ou mesmo tipo “hospices”. É urgente e necessária uma reforma do sistema de apoio aos doentes e famílias que caminham na estrada de uma morte anunciada e muitas vezes breve.

Não é possível nem adequado que seja unicamente o Ministério da Saúde, com as suas várias valências, a ser responsável por promover e potenciar uma morte digna. Deverá também o Ministério da Segurança Social ser responsabilizado e incluído em todo este processo. Sabemos nós, que diariamente lidamos com doentes e famílias que vivem estas situações de terminalidade da vida, quão difícil é a gestão emocional, mas também, e sobretudo, quão exigente é a gestão social e profissional de cada cuidador. Filhos que se desempregam para cuidar dos pais. Pais que recorrem a baixas de mentira para cuidarem dos filhos. Cônjuges que são despedidos porque faltam muito para cuidar dos seus cônjuges. Enfim, tudo é possível e tudo é feito pelas famílias para acompanharem os seus familiares nos seus últimos tempos de vida. Também sabemos que existem ajudas técnicas e apoios financeiros específicos para pessoas doentes, mas especificamente para quem cuida e quem vive o seu tempo final de vida o que existe?

Será que o acolhimento à chegada (nascer) merecer mais dignidade do que na partida (morrer)? Todos sabemos de maternidades ou de serviços de obstetrícia que fecharam por falta de condições clínicas ou estruturais (e muito bem!). Alguém conhece algum serviço hospitalar que tenha encerrado por falta de condições clínicas ou estruturais no apoio a doentes em fim de vida? De que dignidade falamos quando falamos de morte digna?

Parece que a morte digna é só e apenas aquela que é por mim controlada. Mas, mesmo essa só é por mim controlada (e mesmo essa tenho dúvida) quando cometo suicídio, pois quer na eutanásia, quer no suicídio assistido (ajudado), haverá que existir a contribuição acessória de uma outra pessoa.

Porque a morte de alguém não é só a morte desse alguém, mas é uma morte que influencia mais alguém, deverá a sociedade estar, ela mesma, envolvida no que a ela (morte) diz respeito.

Referimo-nos objectivamente à envolvência e responsabilidade que ao Ministério da Segurança Social deve ser exigido nos processos de fim de vida de cada cidadão. Ao nascer, porque a fragilidade e a vulnerabilidade do ser que nasce é tremenda e porque necessita de cuidados especiais e porque todos conhecemos as vantagens de uma boa vinculação mãe/filho, e porque… e porque… e porque inúmeras são as vantagens da presença dos progenitores (e muito bem!) o estado consigna determinados direitos plasmados na licença de Maternidade (na realidade Licença Parental) que contribui para protecção das mães e dos pais. Estas leis prevêem e regulam a atribuição às mães e aos pais o direito de dispensa de trabalho durante o tempo necessário, conforme os interesses da criança e das necessidades familiares. Ao morrer, porque a fragilidade e a vulnerabilidade do ser que morre é tremenda e porque necessita de cuidados especiais e porque todos conhecem as vantagens e as necessidades do cuidar até ao fim, e porque… e porque… o estado consigna o quê? Nada comparável com os direitos de quem é pai ou mãe (Ver Código do trabalho Artigo 251.º - Faltas por motivo de falecimento de cônjuge, parente ou afim).

É pela exigência, por exemplo, da possibilidade consignada pelo estado, que cada doente no seu processo final de vida tenha a possibilidade de eleger um cuidador que o acompanhe no seu tempo final. Que este cuidador possa beneficiar dos mesmos (idênticos) direitos dos progenitores quando nasce uma criança.

É pela anulação das diferenças do reconhecimento da dignidade de quem nasce e de quem morre que nos devemos bater e não pelo princípio, muitas vezes egoísta, de autodeterminação de cada um.

Psicólogo de Cuidados Paliativos do Centro Hospitalar de S. João, doutorando em Bioética, deputado Municipal na Câmara do Porto