20.4.16

Prostituição. Do mito artístico em Paris ao talho do mundo moderno

NUNO RAMOS DE ALMEIDA, in "Jornal I"

A França aprovou uma nova lei sobre a prostituição: a legislação atual persegue apenas os clientes e o lenocínio. Uma lei que promete acabar com a prostituição no país em que ela está gravada até na arte.

Um dos livros do Prémio Nobel da Literatura, Vargas Llosa, “O Paraíso na Outra Esquina”, conta em paralelo a vida da revolucionária e feminista Flora Tristán e do seu neto, o pintor Paul Gauguin. O pintor morrerá de sífilis nas ilhas da Polinésia Francesa, vítima de uma doença sexualmente transmissível contraída na sua vida em Paris.

A prostituição entra na arte, depois de Maria Madalena, como sinal de modernidade, marginalidade, subversão, como símbolo da própria cidade de Paris. O bairro conhecido pela prostituição, Montmartre, cheio de cabarés e casas de passe, é também o local onde Manet, Van Gogh e Picasso, entre muitos outros artistas e intelectuais, deram as primeiras pinceladas.

A sua presença é sensível na vida dos artistas e nas próprias obras, como os quadros de Toulouse-Lautrec.
O artista é como dizia o poeta Baudelaire, um flâneur que deambulava pela noite da cidade, em que as prostitutas eram figuras centrais. O autor d’“O Pintor da Vida Moderna” era bastante direto sobre o papel do artista quando lhe perguntavam o que era. Ele respondia sem dúvidas: uma prostituta. À atividade de deambulação dos artistas pela cidade, Baudelaire chamava a “santa prostituição da alma”.

Há uma certa magia nessas zonas da cidade, como relata Henry Miller no seu romance “Quiet Days in Clichy”: “Montmartre is sluggish, lazy, indifferent, somewhat shaby and seedy-looking, not glamorous so much as seductive, not scintillating but glowing with a smoldering flame.” (Montmartre é vagarosa, preguiçosa, indiferente, parece algo decadente e suja, é mais sedutora que glamorosa, não cintila mas brilha como uma chama fraca.)

É esta aventura de descobrir uma cidade nova, em que as prostitutas são uma espécie de porta de entrada, que Miller testemunha no seu ”Trópico de Câncer”: “I have no money, no resources, no hopes. I am the happiest man alive.” (Não tenho dinheiro nem recursos nem esperanças. Sou o homem mais feliz do mundo.) E Montmartre era o centro de gravidade desta descoberta: “The insidious charm of Montmartre is due, in large part, I suspect, to unconcealed traffic in sex. Sex is not romantic, particularly when it is commercialized, but it does create an aroma, pungent and nostalgic” (O charme insidioso de Montmartre deve-se em grande parte, desconfio, ao comércio de sexo às claras. O sexo não é romântico, particularmente quando é comercializado, mas gera um aroma pungente e nostálgico), garante Miller em “Quiet Days in Clichy”.

Essa comunhão é que permitia o conhecimento da cidade. “Uma das características que a prostituição ganha com o advento das grandes cidades é um fenómeno de massas. A prostituição abre a possibilidade de uma comunhão mítica com as massas”, garante o filósofo Walter Benjamin, autor de “Paris, a Capital do século xix”. Em muitos dos escritores e artistas, este ato de voyeurismo nas deambulações não tem muitas ilusões; eles sabem que na boémia (la bohème), tanto a cidade como as prostitutas só mantêm a magia quando não se percebe que querem é dinheiro. O mesmo se vive na arte. E se a imagem de capa de “Le Paris Secret des années 30”, do fotógrafo Brassaï, é a casa de prostituição Chez Suzy, onde três mulheres nuas recebem os clientes, a verdade é que a prostituição pode até ter aspetos sórdidos escondidos, mas tem pouco glamour mítico.

No relatório do Parlamento Europeu de 2014 “A exploração sexual e a prostituição e as suas consequências sobre a igualdade entre homens e mulheres”, a situação está preto no branco: calcula-se que as receitas anuais da prostituição (números de 2012) sejam cerca de 186 mil milhões de euros por ano e que na prostituição sejam exploradas 42 milhões de pessoas, 90% das quais por um proxeneta, e que mais de 75% delas tenham entre 13 e 25 anos.

Segundos dados citados por este relatório, as receitas da prostituição na Alemanha atingiriam cerca de 14,5 milhares de milhões de euros por ano; na Holanda, cerca de 600 milhões de euros; e em Espanha, mais de 18 mil milhões de euros por ano. Mais de 70% das pessoas que se prostituem no espaço da UE são migrantes. Segundo o relatório da ONUDC (2010) “Trafficking in persons to Europe for sexual exploitation”, 62% das vítimas de tráfico humano são vítimas de exploração sexual – mais de 140 mil pessoas.

O mesmo relatório europeu cita estudos que afirmam que 70% a 90% das pessoas que se prostituem na UE são forçadas a isso. Perante esta situação, no quadro dos países da União Europeia adotaram-se dois tipos de política: regulamentares, como na Holanda e na Alemanha, em que se regulariza a atividade da prostituição, e abolicionistas, em que se pretende acabar com a prostituição. Nesta segunda forma de resposta, a Suécia e agora a França estabelecem políticas em que as pessoas que se prostituem não são perseguidas, e são elaboradas políticas de apoio e de reinserção a quem está nessa situação, mas os clientes são multados e o lenocínio perseguido penalmente.

Ambas as políticas pretendem retirar do domínio da criminalidade centenas de milhares de pessoas, sobretudo jovens mulheres, e dar-lhes direitos sociais. A diferença é que a política regulamentar prevê a existência de mulheres que se prostituem “livremente”, enquanto a abolicionista declara ser muito difícil perceber quem é obrigado a fazê-lo e quem o faz por decisão própria, e considera que mesmo estas últimas provavelmente só o fazem na ausência de alternativas de trabalho.

De qualquer forma, o que estudos na Alemanha e na Holanda verificam é que as políticas de regulamentação não conseguiram dois dos pontos a que se propunham: continuam mais de 90% das pessoas que se prostituem com contratos precários e sem apoios sociais, e não houve diminuição mas, pelo contrário, aumento do setor criminoso que explora a prostituição. “Vários estudos realizados nos últimos anos sugerem que a legalização da prostituição, longe de reduzir, aumenta o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual, ao mesmo tempo que as condições de trabalho das pessoas prostituídas não melhoram e os níveis de violência a que estão sujeitas não diminuem, segundo os relatórios do governo [Holanda e Alemanha]”, diz o relatório do Parlamento Europeu.

Segundo a advogada e dirigente do MDM (Movimento Democrático das Mulheres) Lúcia Gomes disse ao i, esta proposta aprovada em França é sobretudo uma vitória das mais de 60 organizações feministas que se bateram por ela. “É o caminho que deve ser seguido em Portugal. É uma legislação mais avançada que a sueca, porque protege as pessoas que se prostituem. Mais de 80% são vítimas de tráfico humano. Não só multa o cliente, como ressocializa as pessoas que tiveram de recorrer à prostituição: através da legalização daqueles que são imigrantes ilegais, apoio social e ajuda na procura de emprego. É uma alternativa viável para estas pessoas.”

Diferente opinião que as associações feministas citadas pela advogada tiveram outras organizações no terreno. O Strass (Sindicato do Trabalho Sexual) denunciou durante o período de discussão da lei: “Trata-se de privar de direitos aqueles e aquelas que já têm tanta dificuldade em exercê-los, em nome de uma ideologia que não existe na realidade do terreno e para a qual não foram consultados os principais implicados.”

Na mesma altura saiu um manifesto intitulado “Não toques na minha puta” que se insurgia contra a nova legislação: “Cada um tem o direito de vender os seus encantos e de o gostar de o fazer. Nós recusamos que os deputados ditem leis sobre os nossos desejos e prazeres”, afirmavam os promotores do documento.