17.5.16

Privação material das famílias diminuiu em 2015, mas estilhaços da crise mantêm-se

Natália Faria, in "Público"

Portugal continua a contar com quase meio milhão de pessoas que se mantêm em risco de pobreza, apesar de trabalharem. O anunciado Complemento Salarial Anual não pode servir de subsídio encapotado às empresas, alerta investigador.

Mais do que a classe média, os pobres foram os mais penalizados pelas políticas austeritárias que vigoraram durante a permanência da troika em Portugal. O inquérito aos rendimentos e condições de vida divulgado nesta sexta-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) evidencia isso mesmo, segundo Carlos Farinha Rodrigues, investigador na área da distribuição do rendimento, desigualdade e pobreza.

“As famílias desprotegidas não só não foram isentas do processo de ajustamento como, antes pelo contrário, foram quem mais sofreu com isso, com quebras no rendimento na ordem dos 20%, entre 2009 e 2014”, precisa o economista.

Com o risco de pobreza a estabilizar em 2014 nos 19,5% da população portuguesa (o mesmo valor do ano anterior, o que equivale, ainda assim, a dizer que um em cada cinco portugueses vivia abaixo do limiar de pobreza, calculado em 422 euros/mês), o pouco que se conhece de 2015 aponta para a estabilização e mesmo para alguma melhoria nos indicadores. A taxa de privação material, por exemplo, que mede a carência forçada de pelo menos três de uma lista de nove itens (que vão da capacidade para pagar atempadamente as despesas ou financiar uma refeição de carne ou de peixe pelo menos de dois em dois dias), recuou dos 25,7%, em 2014, para os 21,6% de 2015.


Do mesmo modo, a taxa de privação material severa (carência em quatro dos nove itens) desceu para os 9,6% em 2015, contra os 10,6% de 2014 e os 10,9% de 2013. Porém, se recuarmos a 2012, aquele valor fixa-se nos 8,6%. E por isso é que Carlos Farinha Rodrigues afirma que nenhuma destas melhorias permite varrer para debaixo do tapete os estilhaços da crise.

“As políticas de austeridade fizeram recuar os indicadores, em muitos casos, para níveis que não existiam desde o início do século. É verdade que o cume do agravamento dá-se em 2013, mas a melhoria que é possível detectar é só relativamente ao ano imediatamente anterior, ou seja, ainda estamos longe do ponto em que estávamos em 2008 e 2009.”

Se ao risco de pobreza se somar o risco de exclusão social, a população afectada situava-se nos 26,6% em 2015. É um recuo relativamente aos 27,5% do ano anterior. Mas, como aponta Farinha Rodrigues, “a percentagem de crianças e jovens em situação de pobreza continua altamente preocupante”. O INE conta que é nas famílias com rendimentos inferiores a 428 euros mensais que se encontra a proporção mais elevada de menores (25,2%), “o que reflecte as condições relativamente desfavorecidas das famílias com crianças”. Dito doutro modo, o risco de pobreza afectava 24,8% dos menores de 18 anos.


Trabalhadores, mas pobres
Os desempregados continuavam a ser, porém, os mais ameaçados pela pobreza. E aqui houve um agravamento. Se, em 2013, a pobreza afectava 40,5% dos desempregados, no ano seguinte eram já 42% os desempregados que viviam com menos de 422 euros por mês. E 60,4% viviam com menos de 610 euros mensais. Mas o que choca mais Carlos Farinha Rodrigues é a persistência dos chamados trabalhadores pobres. Entre a população empregada, 10,9% viviam em 2014 abaixo do limiar de pobreza. São cerca de 495 mil trabalhadores. No ano anterior, a percentagem era de 10,7 e, em 2011, era de 9,9.

“Há uns anos, ter um emprego era um factor de isenção em relação à pobreza e isso hoje não acontece.” Porquê? “Porque se reforçou a componente de baixos salários do nosso modelo económico durante o período austeritário e porque o processo de ajustamento reforçou a fragilização das relações laborais.”

A que ponto os mais recentes aumentos do salário mínimo nacional (de 485 para 505 euros, em Outubro de 2014 e até 31 de Dezembro de 2015, e para os 530 euros, desde 1 de Janeiro) vieram melhorar a situação é algo que se perceberá mais tarde. Mas o economista lembra que “o que é necessário é todo um processo de dignificação do factor trabalho que permita passar deste modelo assente em baixos salários para um modelo mais socialmente sustentado”. “O que se passa configura uma violação dos direitos de cidadania das pessoas”, enfatiza, para defender que “estes níveis de pobreza são um travão ao próprio desenvolvimento económico”.

No início deste ano, o Governo anunciou a criação do Complemento Salarial Anual (CSA) precisamente para responder aos quase meio milhão de portugueses que vivem abaixo do limiar de pobreza, apesar de trabalharem. O novo apoio social funcionaria através de um crédito fiscal àqueles trabalhadores.

Ao PÚBLICO, fonte do Ministério das Finanças respondeu que a medida consta do Programa do Governo, “não tendo a sua implementação sido equacionada para 2016”. Além disso, acrescenta-se na mesma nota, no Programa de Estabilidade para 2016-2020 que o Governo entregou em Abril no Parlamento “está prevista a atribuição de complementos salariais a famílias de baixos rendimentos”.

O importante aqui, para Farinha Rodrigues, será que esta medida seja “extremamente cuidadosa para não se transformar numa forma de as empresas reduzirem, às custas do Estado, os problemas que têm para resolver”. Dito doutro modo, o novo apoio social não poderá “ser pretexto para adiar ou evitar as alterações estruturais que o país tem de introduzir para que o mercado de trabalho deixe de ser gerador de desemprego ou pobreza”.