31.5.16

Será a desigualdade inevitável?

Salvador Luz, in "Sábado"

Em plena globalização, o fosso entre ricos e pobres continua cada vez mais profundo. Sabe-se que a maior parte da riqueza mundial é detida por apenas uns poucos e que a desigualdade está a aumentar nos países desenvolvidos. O que causa afinal a desigualdade? Será verdadeiramente inevitável?

Numa TED Talk intitulada Quem controla o mundo?, o físico James Glattfelder apresentou um estudo matemático que tinha realizado para tentar descobrir quais seriam os verdadeiros key players na finança internacional. Com esse objectivo em mente, analisou cerca de 43 mil empresas multinacionais e as respectivas ownership networks, isto é, as relações de controlo e propriedade detidas pelas várias empresas entre si e pelos respectivos accionistas.

Através dos seus cálculos, Glattfelder descobriu que uma percentagem de apenas 36% das multinacionais detinha cerca de 95% do valor total de todas as multinacionais em análise. Revelou também que os 737 maiores accionistas controlavam 80% do valor total de todas as multinacionais em análise. Ainda mais relevante, pela gritante desproporcionalidade, conclui a sua exposição indicando que 40% do valor total em jogo (das tais 43 mil empresas) era detido por apenas 146 accionistas, os quais denominou de top players. Em termos genéricos, o que estes dados nos dizem ao fim e ao cabo é que uma percentagem muito inferior a 1% da população mundial controla cerca de 40% da riqueza existente.

Esta afirmação, e outras do mesmo tipo, provêm de variadas fontes e apesar de indiciarem uma desigualdade mundial impressionante, não constituem já surpresa para a grande maioria. Estamos habituados a saber que pequenas minorias controlam maiorias, estamos, de certo modo, conformados com desproporções chocantes.
Sendo verdade que a desigualdade entre países está a diminuir em termos absolutos, devendo-se esta diminuição a alguma redução da pobreza mundial, mas sobretudo a novas fortunas, principalmente na China e na Índia, o que é facto é que a desigualdade dentro dos vários países continua a aumentar.

No fundo, o que se passa é que, apesar da diferença de rendimentos entre um europeu médio e um chinês médio estar a diminuir, a diferença de rendimentos entre um chinês rico e pobre ou entre um europeu rico e pobre continuam a aumentar. O caso dos EUA é especialmente relevante: em 2011, sabia-se que apenas 1% dos agregados familiares detinha 40% de toda a riqueza nacional.

Chrystia Freeland, autora do bestseller Plutocratas: a ascensão dos novos super-ricos e a queda de todos os outros constata que vivemos numa época em que a desigualdade na distribuição de rendimentos é cada vez mais gravosa. Para o demonstrar, estabelece uma comparação: enquanto que em 1970, uma franja de 1% da população americana detinha cerca de 10% de todo o rendimento nacional, já actualmente, aos mesmos 1% corresponde uma percentagem de 20% de todo o rendimento nacional.

A jornalista e política alerta então para um conjunto de causas políticas que estarão na base desta crescente desigualdade entre os super-ricos e os restantes: a desregulação do sector financeiro, a redução de impostos redistributivos, as privatizações e as protecções legais mais frágeis no mercado laboral. Mas desenganem-se aqueles que lhe atribuem um tom mais socialista no discurso. Freeland defende abertamente o capitalismo e a componente de meritocracia que ele acarreta. Afirma, contudo, que uma plutocracia meritocrática rapidamente se pode transformar numa plutocracia "do compadrio", em que uns poucos se debateriam para manter o controlo sobre a maioria, perdendo relevância o mérito individual.

Freeland faz também referência ao conhecido problema que a chamada Curva Great Gatsby demonstra: quanto maior for a desigualdade de rendimentos, maior será a imobilidade social. Esta constatação é algo intuitiva, pois sabemos que as vantagens daqueles com maior riqueza são cumulativas – pessoas nascidas em famílias mais prósperas terão um melhor acesso à saúde e à educação, melhor estimulação intelectual e um maior capital social e rede de conhecimentos para usar ao longo da vida, o que acaba por implicar maiores hipóteses de sucesso, existindo um ciclo vicioso em que os ricos ficam mais ricos e os pobres deixados para trás.

Na mesma linha, o economista francês Thomas Piketty afirma no seu recente bestseller O Capital no Século XXI que a desigualdade não se trata de um mero acidente da História, mas sim de uma característica inerente a um qualquer sistema capitalista, que só pode ser reduzida ou anulada através de intervenção estatal. Vem fundamentalmente dizer, através de demonstrações matemáticas, que a desigualdade continuará a aumentar enquanto a taxa de rendimento do capital for superior ao crescimento económico, originando uma maior concentração de capital.

No entanto, o que releva especialmente da análise de Piketty é o facto de afirmar que a desigualdade terá sempre existido, através do que ele chama de capitalismo patrimonial ou riqueza herdada (de certa forma associada à mencionada curva de Gatsby e ao imobilismo social); a razão por detrás do facto de a desigualdade parecer estar a aumentar actualmente deve-se simplesmente a uma "regresso à normalidade" – é que o século XX terá sido um século sui generis, excepcional, em que uma Grande Depressão, revoluções comunistas e duas Guerras Mundiais terão feito com que a redistribuição de riqueza fosse uma absoluta prioridade política, estando estes acontecimentos na origem da afirmação do Estado-Providência, e mais tarde, o Estado Social.

O que acontece é que as últimas décadas, marcadas pelo fenómeno da globalização e pelo surgimento de políticas neoliberais, estarão por detrás da crescente desigualdade que se observa actualmente. Thomas Piketty chega a dizer que estaremos a regressar ao período pré-1914, em que existem uns poucos herdeiros imensamente ricos.

De certa forma, a visão de Piketty encaixa nos cálculos de Glattfelder e nas conclusões de Freeland, que por sua vez acabam por se concretizar, de forma algo simplificada num adágio popular: dinheiro chama mais dinheiro. Fica claro que a disparidade entre aqueles mais prósperos e menos prósperos tende sempre a crescer, numa espécie de ciclo vicioso exponencial.

Mas nem tudo é mau, e não estamos condenados a viver segundo as leis da Economia porque sabemos que existe Estado – existe um poder político que pode interferir e procurar modificar as tendências económicas através de intervenções variadas, orientadas por ideais de justiça e de igualdade.

Os instrumentos à disposição dos Estados para redistribuir riqueza e contrabalançar os crescentes efeitos da desigualdade são vários e conhecidos: um novo aumento da regulação dos mercados financeiros, a implantação de tributação progressiva, a celebração de acordos internacionais que impeçam as empresas de contornar o devido pagamento de impostos, e fundamentalmente, a garantia de igualdade real de oportunidades para todos, através de uma educação acessível e universal.

Mesmo em casos de extrema desigualdade e pobreza, existem soluções quase-milagrosas. No Brasil, nas últimas décadas, cerca de 40 milhões de brasileiros terão saído do limiar da pobreza e ingressado na classe média. Para além de crescimento económico em geral, um dos factores por detrás deste espectacular facto terão sido as "Bolsas Família", uma revolucionária medida de apoio social extremamente simples implantada por Lula da Silva: às famílias mais desfavorecidas era entregue uma pequena quantia em dinheiro em troca de determinadas contrapartidas, isto é, comportamentos socialmente positivos que os beneficiários teriam que levar a cabo, como por exemplo, garantir a frequência dos filhos na escola ou o cumprimento do plano de vacinação.

Nos primeiros três anos o programa reduziu a pobreza extrema em 15% e estudos recentes indicam que a "Bolsa Família" terá ajudado a reduzir a disparidade de rendimentos no Brasil num terço. Tal foi o sucesso no combate à pobreza desta medida que 40 são os países que procuraram já seguir o exemplo do Brasil, implantando programas semelhantes.

Mesmo no mundo globalizado dos dias de hoje, os governos têm uma efectiva e real capacidade para tomar medidas relevantes para reduzir a desigualdade. Por demasiado tempo, políticos e economistas têm visto o problema de modo algo conformado, encarando a desigualdade como uma realidade lamentável, mas imutável. No entanto, as soluções existem e estão nas suas mãos.