30.6.16

“Uma criança refugiada não se salva com comida, é preciso dar-lhe colo” - Entrevista a Lora Pappa

Sofia Lorena, in "Público"

Quando os políticos não fazem o seu trabalho e as regras não servem, há sempre alguém que não desiste. Lora Pappa não desistiu da Europa, mesmo quando a Europa desistiu dela.
Aconselhou governos e foi consultora do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR). Depois de décadas a identi? car as falhas no sistema de acolhimento de refugiados percebeu que só tinha uma opção.
“Começámos do zero, decidimos fazer o que ninguém estava a fazer”, explica. Em 2010, fundou a ONG METAdrasi para ajudar as crianças que sobrevivem às guerras e se perderam dos pais a começar de novo. “O que eu mais queria era que o nosso trabalho deixasse de ser necessário”, diz a activista, em Lisboa para receber o Prémio Norte-sul do Conselho da Europa.
Como é que ninguém se tinha lembrado que as crianças têm necessidades especiais? Em situações normais, o mandato do ACNUR é pressionar os governos a fazer o que é preciso.
Nos anos todos que lá passei, fui percebendo quais eram as grandes falhas do sistema de acolhimento grego. A maior de todas era que muitos menores sem acompanhantes estavam em centros de detenção. E o mais extraordinário é que já havia centros só para menores em Atenas, mas não havia quem se responsabilizasse e os acompanhasse até lá.
O problema era a falta de guardiões legais? Exacto. Foi um grande risco, porque há crianças que fogem e nós podemos ter problemas com a Justiça. Mas decidimos que valia a pena. Dissemos, “alguém tem de o fazer”. Começámos devagar, formámos assistentes sociais e treinámos intérpretes.
O objectivo era que as crianças não passassem mais de 24 horas no centro de detenção. No nosso primeiro ano de actividade, 2011, tivemos muitos problemas com tra? cantes e fomos obrigados a contratar seguranças. Estes miúdos estão perdidos, não con? am em ninguém. E se alguém que viram no barco as convence a fugir para seguir viagem, é muito difícil explicar-lhes que é mais seguro ? car.
Quantas crianças já acompanharam? Mais de 3700. Há os números o? ciais e há a realidade, que é muito diferente. Percebemos que muitos menores não acompanhados nem sequer são registados como crianças. Dizem à polícia que têm 18 ou 19 anos porque têm medo de ser presos.
E os polícias não têm culpa, não estão treinados para saber como agir.
E em que estado é que estas crianças vos chegam às mãos? Quando uma criança sobreviveu à guerra e depois sobreviveu a um naufrágio, quando se perdeu dos pais e nem sabe se ainda tem família, tem de aparecer um adulto que perceba que tem de começar por lhe lembrar que é uma criança. São casos muito especiais, é preciso criar uma rede para que os miúdos voltem a sentir-se seguros. Por isso é que criámos a ? gura do guardião. Em muitos casos, elas nem sabem o que querem, já só sabem o que lhes disseram para fazer.
“Tens de chegar à Alemanha”, “Vens connosco, que vamos tratar de ti”. Às vezes, basta um dia connosco para voltarem a lembrar-se que são crianças.
O Governo e as instituições europeias já perceberam a razão de ser do vosso trabalho? Demorou, mas agora percebem.
Aliás, as outras ONG e os serviços do Governo estão sempre a pedir-nos ajuda. Quando a crise começou nós já tínhamos os guardiões nas fronteiras, nas ilhas, e em Atenas. Era só uma gota do oceano, mas era uma gota fundamental. Mas há quem ainda não entenda o nosso trabalho, quem pense que basta pôr-lhe um prato de comida à frente. Mas não pode ser, as crianças são crianças.
Uma criança refugiada não se salva com comida, é preciso darlhe colo. Devíamos conseguir que cada criança tivesse o seu guardião, mas nas alturas mais complicadas temos de fazer opções. A certa altura, tivemos de dar prioridade aos rapazes até aos 15 anos, mas conseguimos sempre guardiões para todas as raparigas com menos de 18. Ter um guardião aumenta em 40% as possibilidades de uma criança ? car na Grécia em vez de seguir caminho e cair nas redes de tra? cantes. Nós não as largamos, se os pais ? caram para trás não descansamos até os encontrar.
E os pais nunca desistem, há famílias que passam quatro meses na Grécia à procura dos ? lhos.
E quando já não há pais nem outros familiares? Explicamos-lhes que é melhor ? carem connosco. Muitas vezes eles não sabem que os pais morreram, só sabem que se perderam deles. É preciso darlhes tempo até poderem decidir por si próprios. Outras vezes viram os pais morrer, sabem que se afogaram. Mas para podermos avançar e requerer o asilo exigemnos corpos e certi? cados de óbito. Como é que explica aos burocratas em Bruxelas que os corpos foram comidos pelos peixes? Com o acordo entre a União Europeia e os turcos, os refugiados que já estavam na Grécia foram todos encerrados em centros de detenção à espera de serem devolvidos à Turquia. Como é que isso difi cultou o vosso trabalho? O acordo é uma loucura. A luta já era constante, mas ? cou tudo pior. Quando a fronteira foi encerrada, em Fevereiro, nós estimámos que havia 2000 crianças desacompanhadas a tentar passar para a Macedónia.
Finalmente, há duas semanas, os serviços gregos de asilo começaram o pré-registo dos menores... Já encontraram 500 na Grécia continental e mais de 300 nas ilhas. Estavam detidas nos centros e ninguém sabia.
A União Europeia abandonou os gregos? Quando a União assinou o acordo com a Turquia nem pensou no que estava a fazer à Grécia. Toda a gente sabia que os serviços de asilo gregos têm 250 funcionários. É preciso ser-se de outro planeta para não perceber que no dia seguinte à entrada em vigor do acordo toda aquela gente ia requerer asilo. E de um momento para outro temos 8000 Lora Pappa Há 21 anos que o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa distingue duas pessoas que promovem a solidariedade entre os hemisférios. No ano da crise de solidariedade a que os líderes chamaram crise de refugiados, a premiada do Norte só podia ser a grega Lora Pappa “Uma criança refugiada não se salva com comida, é preciso dar-lhe colo” “Quando uma criança sobreviveu à guerra e depois a um naufrágio, quando se perdeu dos pais e nem sabe se ainda tem família, tem de aparecer um adulto para lhe lembrar que é uma criança” Entrevista Sofia Lorena
um comunicado de imprensa e em dois dias tivemos 280 telefonemas. Gregos a dizer “já tenho um quarto, tragam-me a criança amanhã”. Claro que não é assim, é preciso saber se as famílias cumprem determinadas condições. Mas foi tão comovente.
E os resultados estão a ser os que esperavam? Ainda melhores! Já colocámos 12 crianças com famílias. E bastam umas semanas para estes miúdos estarem a falar-nos dos seus “pais gregos”. É incrível o que eles crescem e se abrem quando se vêem de novo a viver com uma família. Tivemos o caso de uma miúda de 12 anos que estava a tomar conta do irmão, mais pequeno, desde a Síria. Claro que já não sabia o que era ser criança, já não se lembrava. É maravilhoso.
O principal obstáculo então não é a falta de dinheiro. É mesmo a burocracia? Exactamente, é incrível, mas o custo de colocar uma criança refugiada numa família é três vezes menor do que o custo de a manter num abrigo. Claro que as famílias recebem um subsídio, mas é tão pequeno, ninguém faz isto pelo dinheiro. Quem decide receber uma criança só tem de ter empatia e paciência. Se os miúdos dão problemas é por lhes faltarem adultos que os mandem dormir, pessoas a pedir asilo e os mesmos 250 funcionários. Toda a ajuda que ia chegar nunca chegou.
E como é que os serviços gregos tentam fazer face a isto? O que sei é que é os gregos fazem o que podem. Mas sem a solidariedade dos outros Estados-membros é uma missão impossível. Em Agosto do ano passado, por exemplo, percebi que o número o? cial de menores não acompanhados era igual ao do Verão de 2014. Com toda a gente que estava a chegar, claro que não podia ser! Apanhei um avião para [a ilha de] Lesbos e nem queria acreditar, havia crianças sozinhas por todo o lado.
Mas os polícias não sabiam o que fazer. “Obrigo-as a irem para os centros de detenção? Já nem há que os obriguem a fazer a cama.
Estas crianças deixaram de saber o que é ter regras, disciplina. É tão simples quanto isso.
Outra área em que a METAdrasi foi absolutamente revolucionária é a formação dos intérpretes. O Governo, a ONU, toda a gente quer os vossos intérpretes e vos pedem para dar formação. O que é que não estava a ser feito? Até nós aparecermos ninguém se preocupava com a qualidade dos intérpretes. Ninguém achava importante que se falasse a língua.
Nós temos pessoas que falam 33 línguas. É uma irresponsabilidade enorme, achar que isso é secundário. Estes intérpretes não são simples tradutores, são a voz de pessoas que se encontram nas situações mais frágeis que se pode imaginar, podem fazer a diferença entre a vida e a morte. Se alguém se queixa de dores no “coração” e o intérprete traduz “rim”, o que é que vai acontecer àquela pessoa? A maioria dos nossos intérpretes são ex-refugiados ou imigrantes, passaram por muito, estiveram em situações limite. Mas nem eles estavam preparados para o horror de que a Grécia tem sido cenário.
Quando os corpos dão à costa, são eles que agarram nos pais em pranto enquanto esperam para reconhecer os ? lhos. São coisas que eles nunca mais vão esquecer.
“A Comissão Europeia tem o seu ritmo. O monstro da burocracia não se compadece com a realidade” não se compadece com a realidade. Talvez tudo mude agora com o “Brexit”. Não estou muito optimista, mas gostava que fosse uma chamada de atenção, que obrigasse quem decide a parar para pensar. Infelizmente, não acredito. Às vezes penso que os líderes europeus só vão acordar no dia em que o continente estiver em guerra.
Se o acordo for levado à letra, a ideia é que a Grécia não respeite os direitos humanos e as Convenções de Genebra. O que eu sei é que os funcionários fazem o possível e o impossível para não tornar a vida destas pessoas ainda mais difícil.
A somar a tudo o que foi prometido à Grécia e nunca se fez, por causa do acordo houve ONG estrangeiras que decidiram sair do país.
Sim, é um luxo que nós não temos, por mais que discordemos do acordo. As pessoas continuam lá e precisam ainda mais de ajuda.
As ONG que distribuíam comida, por exemplo, foram-se embora.
E nós íamos deixar estas pessoas à fome? Não podíamos. Primeiro estão as pessoas, lutamos com elas, por elas, o que não podemos é abandoná-las. Decidimos que tínhamos de encontrar outras maneiras de protesto. E a verdade é que ainda nenhum sírio foi expulso para a Turquia, os que saírem decidiram fazê-lo. Vamos lutar por estas pessoas até ao ? m, nos tribunais da Grécia ou nos tribunais internacionais, com todos os meios ao nosso dispor.
O vosso projecto mais recente passa por encontrar famílias de acolhimento para estas crianças. Como é que isso está a correr? Nós já sabíamos que as melhores práticas implicavam criar essa estrutura. É o que se faz há muitos anos na Holanda ou na Bélgica.
Mas o ideal é colocar as crianças em famílias com o mesmo contexto cultural e geográ? co, que falem a língua... E quando avançámos, no ? m de 2014, percebemos que na Grécia, com a crise económica, os imigrantes vivem todos em casas minúsculas e passam por muitas di? culdades.
Acabámos por concluir que o único caminho era abrir esta possibilidade a famílias gregas, sem termos ideia de qual seria a reacção das pessoas. Começámos muito discretamente, ? zemos áreas separadas”, diziam-me. Não podem ser os polícias a decidir o destino destas crianças. Foi aí que percebemos que tínhamos de criar centros de trânsito especiais.
Batemos a todas as portas a pedir dinheiro e a União Europeia respondeu que não nos podia ajudar, estava a gastar tudo com as ONG estrangeiras. Finalmente, conseguimos o ? nanciamento através de jovens gregos que vivem nos Estados Unidos. E a situação era dramática, tínhamos crianças a enforcarem-se, uma rapariga foi violada.
Como é que é possível que as regras estejam tão longe da realidade? Não sei. O que sei é que a Comissão Europeia tem o seu ritmo. O “monstro” da burocracia DR