19.7.16

"As políticas activas de emprego não podem fazer muito durante uma recessão"

Raquel Martins, in Público on-line

David Card, economista e investigador na Universidade de Berkeley, diz que o principal factor que determina as desigualdades salariais é a educação.


O economista David Card ficou conhecido pela investigação que desenvolveu, nos anos 80, sobre o impacto do aumento do salário mínimo nos restaurantes de fast-food de Nova Jérsia e Pensilvânia (EUA). Card e o economista Alan Krueger concluíam que o aumento tinha efeitos reduzidos no emprego, o que lhe custou algumas amizades. Recentemente a sua investigação tem-se centrado na imigração, nas desigualdades salariais e nas políticas activas de emprego. David Card, investigador e professor na Universidade de Berkeley, esteve em Lisboa no final de Junho para participar numa conferência sobre desigualdade salarial, organizada pela Nova School of Business and Economics, onde deixou algumas pistas sobre novas abordagens do problema.

As diferenças salariais podem ter vários rostos: entre homens e mulheres, entre jovens e adultos, entre os mais qualificados e os menos qualificados, entre os cidadãos de um país e os imigrantes. É possível dizer qual a principal causa para a existência destas desigualdades?
A educação é o principal factor que determina as diferenças salariais.

Mas as mulheres têm, tendencialmente, níveis educacionais mais elevados do que os homens, pelo menos no mundo ocidental. Como se explica a existência de disparidades entre géneros tão significativas?
As mulheres têm de facto um melhor desempenho académico. Mas há um estudo feito no Canadá que demonstra que as mulheres têm menos apetência para seguirem cursos de ciências e isso tem um pequeno efeito nas diferenças salariais entre os dois géneros, porque as áreas científicas têm salários mais elevados.

Está a dizer que essas diferenças têm origem também nas decisões que as mulheres tomam em relação à sua carreira?
No estudo que estou a desenvolver com a Ana Rute Cardoso [investigadora na Barcelona Graduate School of Economics], olhamos para Portugal e 20% da desigualdade tem a ver com as políticas salariais de cada empresa e a probabilidade de as mulheres trabalharem em empresas que pagam salários mais elevados é, em média, menor. Adicionalmente há uma pequena componente que tem origem no facto de, mesmo que as mulheres mudem para uma empresa que paga melhor, não terem um aumento salarial tão elevado quanto o dos homens. Estes dois factores explicam um quarto da diferença salarial entre homens e mulheres em Portugal. Há outros investigadores a fazer análises semelhantes noutros países e os resultados são similares.

Por que é que é assim? As mulheres não negoceiam quando são contratadas? Ou é algo que tem origem na cultura das próprias empresas?
Há vários factores. Historicamente em Portugal e em muitos outros países havia dois salários diferentes para o mesmo emprego, um para os homens e outro para as mulheres, e não foi assim há tanto tempo. Por outro lado, as mulheres têm menos apetência para mudar de emprego, a não ser que esse emprego lhes facilite a conciliação entre a vida familiar e o emprego. Embora em Portugal, a maioria dos trabalhos sejam a tempo inteiro. É curioso que se pense que a participação das mulheres no mercado de trabalho em Portugal é como em Itália, em que há uma baixa taxa de participação, quando não é assim.

A empresa tem uma grande flexibilidade para definir os salários, independentemente da contratação colectiva, dado que os trabalhadores recebem mais do que o que está definido nos contratos colectivos
David Card

Disse há pouco que um quinto das desigualdades salariais têm origem na própria empresa. Como é que isso se explica?
Há um grande debate entre os economistas para saber porque é que diferentes empresas pagam salários diferentes ao mesmo trabalhador. Num estudo que fizemos sobre a Alemanha concluímos que as diferenças entre as empresas contribuíam de forma importante para o aumento da desigualdade.

O que é que está a acontecer?
Cada empresa reconhece que tem algum poder para fixar o salários e, se fixar um salário mais elevado, poderá ter mais e melhores trabalhadores. Se quiser reter os trabalhadores aumenta os salários. É uma área de pesquisa ainda em aberto.

Essa diferença de empresa para empresa não estará também relacionada com a contratação colectiva?
Essa é uma questão interessante. É possível que tenha alguma coisa a ver. Mas, por exemplo, Portugal é um dos países da Europa com maior cobertura de contratação colectiva, quase toda a gente está coberta por instrumentos de regulamentação colectiva, por via das portarias de extensão [um instrumento administrativo que permite alargar a todas as empresas de um mesmo sector um contrato colectivo, mesmo que não estejam filiadas na associação empresarial que o assinou]. Apesar disso, é dos países com maiores desigualdades salariais e quando se olha para o salário mínimo da contratação colectiva, as empresas geralmente pagam acima. A empresa tem algum poder discricionário: quando contrata uma mulher pode pô-la no primeiro nível e quando contrata um homem posicioná-lo no nível seguinte ou pode promover o homem e a mulher não. Tem também uma grande flexibilidade para definir os salários, independentemente da contratação colectiva, dado que os trabalhadores recebem mais do que o que está definido nos contratos colectivos. Estamos neste momento, eu e a Ana Rute Cardoso, a recolher informação sobre todos os instrumentos de regulamentação colectiva em Portugal e a fazer a correspondência com os quadros de pessoal, para tentarmos perceber o que está a acontecer na relação entre o salário que o trabalhador efectivamente recebe e os salários da contratação colectiva. É possível que a contratação colectiva não influencie muito esta questão. Uma das razões que me levam a pensar assim é que se usarmos este modelo para a Alemanha e para Portugal não veremos diferenças. A negociação colectiva pode pôr alguma pressão sobre o sistema. Quanta, não sei responder.

Em Portugal fala-se muito da crise da contratação colectiva.
O mais importante em Portugal é a quantidade de pessoas que estão a entrar no mercado de trabalho com contratos a termo e que recebem salários mais baixos. Daqui a dez anos, teremos toda uma geração de jovens, diplomados de boas universidades ou mesmo do ensino secundário, que trabalharam com contratos a prazo nos últimos dez anos, em vez de aprenderem gradualmente sobre o negócio.

Esta situação, no longo prazo, pode prejudicar as empresas?
As empresas vão ter um problema quando procurarem um trabalhador de 40 anos que saiba alguma coisa da empresa e não o encontrarem, porque ninguém esteve tempo suficiente na empresa para a conhecer. É uma situação triste e é a questão mais importante a ter em conta.

Essa situação foi exacerbada pela crise, deixando a ideia de que não vale a pena estudar e ir para uma universidade, porque o destino é ter um emprego precário e que nada tem a ver com a sua formação.
É insensato concluir que é má ideia ir para a universidade ou investir nas universidades.

As empresas vão ter um problema quando procurarem um trabalhador de 40 anos que saiba alguma coisa da empresa e não o encontrarem, porque ninguém esteve tempo suficiente na empresa para a conhecer
David Card

O Governo português está a reformular as Políticas Activas de Emprego (PAE) e a tentar estudar quais são as mais eficazes. Estes apoios a quem procura emprego são importantes?
Um dos problemas da maioria das PAE tem a ver com o facto de elas representarem um reduzido investimento. Nos EUA, se for estudar um ano para Harvard, custa 50 mil dólares e com este investimento o seu salário sobe cerca 12%. Um programa de PAE tipicamente representa um investimento de dois mil dólares. Não se investe dinheiro suficiente para transformar uma pessoa pouco produtiva numa pessoa mais produtiva, a maioria das vezes esses programas resumem-se a ajudar as pessoas a procurar emprego. Se a economia não está bem, esses programas não têm qualquer efeito de longo prazo, podem ter um efeito de curto prazo. Gasta-se 300 dólares para uma pessoa vir durante dois ou três dias aprender a redigir o currículo e a usar a internet e para participar em clubes de procura de emprego que, nos EUA, funcionam quase como uma sessão de terapia. São importantes, mas não se criam novos empregos. O que se devia era investir para dar um ano de formação adicional, concedendo um diploma, mas para fazer isso é preciso um grande investimento. Se quiser ter um efeito permanente tem de investir alguma coisa, sobretudo numa altura em que não há emprego.

Está-se a deitar fora dinheiro quando chama uma pessoa para fazer uma formação sobre como procurar emprego?
Maioritariamente. Se é uma forma de fazer as pessoas desempregadas sentir-se bem, é bom. Funciona como uma terapia. É uma espécie de Prozac.

Quando a taxa de desemprego é muito elevada as PAE podem ainda assim ter um papel relevante?
Durante uma recessão muitos empregos são destruídos porque as empresas mais antigas desaparecem. Veja o exemplo de uma mulher que trabalhou numa pequena loja durante toda a vida e não sabe usar um computador, e que fica desempregada porque a loja fecha. Temos cada vez mais pessoas assim em períodos de recessão. Como é que vamos ajudar estas pessoas a modernizar-se? Ninguém vai querer contratar esta mulher.

Estas pessoas estão a competir comoutras mais qualificadas, que podem não ter experiência mas têm qualificações.
É por isso que é difícil esperar que as PAE possam fazer muito durante uma recessão. Não podem fazer muito.

Temos de definir o público-alvo [das políticas activas de emprego], qual a magnitude do efeito pretendido e ver se há outra forma de investir o dinheiro que seja mais eficaz

Devemos acabar com estas medidas?
Temos de definir o público-alvo desses programas, qual a magnitude do efeito pretendido e ver se há outra forma de investir o dinheiro que seja mais eficaz. Posso pegar numa mulher de 50 anos, com o 4º ano de escolaridade e dar-lhe alguma formação ou dar-lhe uma reforma antecipada para que ela possa tomar conta dos netos.

A Europa está a enfrentar um grave problema relacionado com os refugiados e com os imigrantes. Qual o impacto que se poderá esperar no mercado de trabalho?
Fiz alguma pesquisa sobre a questão da imigração nos Estados Unidos e, na minha perspectiva, há um pequeno efeito negativo no emprego. Contudo, nunca houve uma situação nos EUA em que a economia estivesse em situação de stress como acontece com a economia portuguesa ou europeia. A Alemanha não está em stress e aceitou um número elevado de migrantes, teremos de estudar no futuro para ver o que acontece. Ter mais pessoas implica ter mais investimento. O problema na Europa é que não há muito investimento e há um grande problema porque os bancos não emprestam dinheiro às empresas e nesse contexto é difícil ter uma economia que se expanda e que invista. Essa é uma das razões para estar mais preocupado do que o normal. A literatura está centrada na realidade dos EUA. Se quiser trazer 20 mil migrantes temos de ver como vamos investir e assegurar que temos capital suficiente para lidar com isto. Se fizermos uns cálculos podemos necessitar de qualquer coisa com 20 mil euros de investimento por pessoa, se for para trabalhar na agricultura precisa de metade do capital. Mas é preciso investir alguma coisa, não se pode lançar as pessoas no mercado de trabalho sem qualquer investimento. Este é um momento único na Europa, em que existe tão pouco investimento e em que é tão difícil investir. É difícil dizer o que irá acontecer.