17.1.17

Teresa Sofia Silva: A violência doméstica é um crime difícil de provar

Rui Alberto Sequeira, in Correio do Minho

A maior parte dos inquéritos aos casos de violência doméstica acabam arquivados. A gestora do Gabinete da Associação de Apoio à Vítima em Braga, Teresa Sofia Silva, diz que é difícil provar este tipo de crime, mas sublinha a disponibilidade das vítimas para cada vez mais denunciar situações de violência que é transversal a todos os extractos sociais.

P - O relatório anual de monitorização sobre a violência doméstica em 2015, da responsabilidade do Ministério da Administração Interna (MAI) revela que o número de detenções efectuadas pela PSP e GNR por crime de violência doméstica tem aumentado nos últimos anos, mas a maior parte dos inquéritos resulta em arquivamento. Torna-se um pouco inglório o trabalho desenvolvi-do no combate à violência doméstica, perante as conclusões deste documento?
R - Sim, acaba por ser. Mas a vocação da APAV é ajudar as vítimas. Claro que nos incomoda o facto do agressor não ser punido. Muitas vezes é um crime que é difícil provar, porque é cometido 'entre quatro paredes', não há testemunhas. Acaba por não existir prova e o Ministério Público tem de arquivar.

P - Não poucas vezes há a reincidência do agressor tendo como consequência a morte da vitima de violência doméstica.
R - Sem dúvida. Quando existem situações de reincidência o resultado é pior. Há bastantes denúncias dos casos de violência doméstica por parte das mulheres e de outras pessoas estranhas aos agressores. Faz-se o inquérito, não se reúnem provas e depois há também o enorme receio por parte da mulher das consequências da denúncia, medo das ameaças que o agressor vai continuando a fazer. A violência doméstica é um crime público e por isso não permite que se desista da queixa; sucede é inúmeras vezes é a vítima acabar por negar em tribunal levando a que o processo seja arquivado pela ausência de provas.

P - O relatório da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna aponta para um aumento estatístico de casos de violência doméstica. Esse facto resulta da alteração legislativa que ocorreu há 15 anos que tornou a violência doméstica em crime público ou existe uma maior predisposição para a denúncia por parte das vítimas?
R - Sim, existe mais predisposição actualmente. As mentalidades vão mudando. Mas como se trata de um crime público, qualquer pessoa pode denunciar. Muitas vezes não são as próprias vítimas que apresentam a queixa, é alguém que sabe e que denúncia a situação, por isso é que se verifica o registo de mais casos. A vítima tem receios, tem medo das represálias. Acaba por não ter coragem muitas vezes para apresentar queixa ou para pedir ajuda.

P - Na sua opinião este aumento estatístico das queixas dos casos de violência doméstica representa um agravamento?
R - Não! É o que está registado, só.

P - É um fenómeno que sempre existiu, mas que estava escondido!
R - Estava camuflado, sim. No passado falava-se pouco. Nos anos mais recentes a mulher acaba por se insurgir um pouco mais e pedir ajuda. Muitas vezes não vão directamente à polícia. É um crime que sempre existiu e que infelizmente vai continuar-

P - Este aumento dos casos de violência doméstica no relatório de monitorização de 2015, na sua opinião, decorre mais da predisposição das pessoas para denunciar do que um efectivo aumento de situações?
R - Na minha opinião o número é constante; passou foi a denunciar-se mais os casos de violência doméstica.

P - O Gabinete de Apoio à Vítima no distrito de Braga acompanhou 420 processos em 2015.

R - É a 'ponta do iceberg'.

P - Estes 420 casos são todos de violência doméstica?
R - Não. Os 420 processos têm a ver com diversos tipos de crime. A APAV dá apoio a vítimas de todos tipos de crime. Sendo que na minha estatística pessoal a grande maioria são mulheres vitimas de violência doméstica sendo que há também mais homens procurar-nos por também serem vítimas.

P - Qual é o trabalho da APAV?
R- A nossa missão é acompanhar as pessoas, ou seja, aconselhar, prestar determinados tipos de apoio consoante a necessidade da pessoa ao nível por exemplo do apoio psicológico, jurídico (o mais solicitado), depois temos o apoio social porque geralmente são mulheres desempregadas e que não têm meios, havendo o encaminhamento para segurança social para obter o apoio judiciário e outros. Subjacente está o apoio emocional em que muitas vezes a mulher pelo simples facto de ser ouvida sai da APAV 'mais leve'. Uma das estratégias do agressor é isolar socialmente a vítima.

P - Não é apenas a violência física é também a psicológica que está muito presente?

R - Sim, sim; violência psicológica principalmente

P - Dos 420 casos no distrito de Braga, 85 por cento são de violência doméstica, os restantes 15 por cento são crimes de que tipo?
R - Ofensa á integridade física - fora do contexto de violência doméstica - assim com as violações; furtos, o 'stalking' (perseguição), a pressão que as entidades empregadoras fazem aos seus trabalhadores.

P - O papel da APAV é encaminhar as vítimas?
R - Exactamente. Aconselhamos juridicamente o que fazer, mas nós não podemos dar patrocínio jurídico. Se à pessoa não tem meios terá mesmo de recorrer á segurança social para pedir apoio judiciário e para que seja nomeado um advogado oficioso.

P - Tem a noção de que a vossa intervenção consegue contribuir para resolver os casos?
R - Conseguimos ajudar a resolver alguns. Não tantos como gostaríamos. Há muitas desistências quando se trata de avançar com as queixas. Há os medos e a vergonha de se assumir que é vítima de violência doméstica. A auto-estima das vítimas fica muito em baixo e não ajuda á tomada de decisões. Por isso é que o apoio psicológico é muito importante para arranjar estratégias, para ganhar coragem para apresentar queixa e não só, também para tomar qualquer decisão que ajude a ir em frente, sair da situação em que a pessoa vítima de violência doméstica se encontra.

P - A violência doméstica atravessa todos os extractos sociais?
R - É transversal. Mas embora atinja todas as classes sociais, as pessoas que mais recorrem à APAV são as de menos recursos económicos porque o nosso apoio é gratuito. As pessoas com outras posses procuram directamente o advogado, o psicólogo.

P - As vítimas de violência doméstica de extractos sociais mais elevados e mais qualificados tem também mais receio se exporem?
R - Sim, embora atendimento que fazemos na APAV é totalmente confidencial.

P - A APAV não tem no distrito de Braga, terá em outros distritos, centros de acolhimento para as vítimas de violência doméstica?
R - Existem duas Casas Abrigo. São casas para acolhimento prolongado para as mulheres vítimas de violência doméstica e para os filhos menores. Uma lei que saiu há algum tempo obriga todas as Casas Abrigo a ter duas ou três vagas para situações de emergência.

P- Para as vítimas da vossa área de influência que são os distritos de Braga e de Viana quais são as possibilidades para dar resposta a esses casos em que é necessário o acolhimento imediato?
R - Há alguns anos era difícil arranjar vagas não apenas nos centros da APAV, mas também de outras instituições. As vítimas ficavam em lista de espera ou eram colocadas em pensões a expensas da Associação. Agora com esta regulamentação das Casas Abrigo e de terem sido criadas as vagas de emergência a situação é resolvida no próprio dia ou no dia seguinte. Essas "Casas Abrigo" estão espalhadas pelo país.

P - Há uma estratégia de não acolher as vítimas de violência domestica em locais de muita proximidade geográfica da área de residência?
R - Sim, nem muito longe nem muito perto, mas a rede para as vítimas de violência doméstica dos distritos de Braga e Viana é boa, é eficaz. Por exemplo para casos de emergência não significa que as vitimas fiquem nesses centros mais próximos. Os técnicos dessa Casa Abrigo se por acaso abrir uma vaga para uma "estadia" mais prolongada a pessoa fica lá ou então o trabalho passa a ser dessa Casa Abrigo que vai tentar com outras, encontrar acolhimento mais prolongado no tempo. A média é seis meses, mas se a pessoa nesse período não tiver refeito a sua vida também não é expulsa

P - O trabalho em rede com outras entidades está bem articulado?
R - Com a Segurança Social t

rabalhamos muito bem, com as polícias, com os tribunais. Aliás existe uma vontade do Ministério Público de colaborar connosco no sentido de definir estratégias para prevenir a violência doméstica. Já tive reuniões nesse sentido e verifico que há muito interesse em concretizar essas atitudes de precaver a violência doméstica. A nível nacional já foi assinado um protocolo entre a Procuradoria Geral da República e a APAV de maior cooperação.

P - E depois no terreno essa cooperação vai-se verificando?

R - Vai, acontece que cada caso é um caso, são muitos casos, mas existe vontade de cooperação.

P - A legislação que temos em Portugal está adequada para a violência doméstica e de protecção da vítima?
R - A legislação é muito boa. As leis são óptimas.

P - Em Portugal as leis são sempre muito bem feitas, mas depois no terreno não há correspondência.
R - As leis são boas, mas depois cabe a quem as aplica fazê-lo da melhor forma. Sem criticar a magistratura, às vezes isso não se verifica e acabamos por perder as vitimas muitas vezes por causa disso. Há algo que revolta as pessoas que muitas vezes nos perguntam: porque é a vítima é quem tem de sair de casa? Aqui não é apenas uma questão de lei, são as circunstâncias dos casos. Tem de se proteger a vitima. E o agressor como é que se vai retirar de casa? Claro que há medidas de coacção que fazem com que seja afastado da residência, mas isso demora tempo e nós queremos uma solução rápida.

P - As vítimas são vítimas duas vezes...em termos penais a moldura está adequada para estes casos?
R - O mínimo é três anos de cadeia e o máximo oito, mas muitas vezes nem sequer é aplicada. Oito anos de prisão já é para casos extremos. Depois há os casos em que a pena não é cumprida na totalidade, os agressores são libertados e reincidem de forma ainda mais violenta. Não há muitas condenações porque provar é sempre complicado

P - Existe ou existiu alguma tolerância na sociedade, até por motivos culturais em relação á violência domestica?

R - Em certos meios haverá. Tivemos um caso há relativamente pouco tempo de uma mulher vítima de maus tratos que pediu ajuda à mãe para a acolher, mas que que foi recusada porque mãe dela entendeu que o lugar dessa mulher era junto do companheiro.

P - Mencionou a avaliação que é feita pelos magistrados em relação a situações de violência doméstica, que acabam por terminar em homicídios, porventura não ser a mais adequada?
R - A lei é boa e embora a moldura penal seja muito reduzida os magistrados às vezes não têm a mão pesada e deviam ter, na minha opinião. Mas muitas vezes, mesmo que queiram ter, não podem porque a lei também não lhes permite. Muitos querem condenar, mas depois voltamos ao ponto de partida: não têm provas suficientes para o fazer. Existindo provas há que fazer um balanço daquilo que foi provado e o que não foi e aplicar a pena de acordo com o que se encontra estabelecido na lei.

P - Correndo-se o risco de ser excessivo ou desenquadrado, pergunta-se se a aplicação da medida de coacção mais gravosa não faria sentido?
R - A prisão preventiva! Sim na fase de inquérito acontece a sua aplicação, mas poucas vezes. Mas queria acrescentar que o processo da violência domestica acaba por ser complicado. Mesmo que haja condenação, muitas vezes depois de cumprir a sentença, o agressor volta a procurar a vitima que nunca mais tem sossego. Há casos, por exemplo os relacionados com ciúmes, que são patológicos. São doenças psicológicas que levam á violência. A vitima acaba por ter de sair do local onde vive, sair do seu emprego e tentar refazer a sua vida em outro local, mas sempre com medo, sempre com receio. Nós aconselhamos sempre as pessoas a apresentarem queixa e a tomarem medidas de protecção.

P - Uma mulher que seja vítima de violência doméstica, que tenha de sair de casa, sair da cidade ou da vila onde mora, tenha de deixar o emprego, legislação existente permite fazer a reintegração social dessa pessoa numa outra zona geográfica?
R - A vítima indo para a Casa Abrigo tem os técnicos que vão tratar da situação. Há apoio psicológico, jurídico. Os processos que existem na comarca de onde é proveniente, passam para a comarca onde foi acolhida. Existe depois a parte social que tenta arranjar um emprego, um modo de vida para que pessoa se auto-sustente, para ter a sua independência e mais tarde poder arranjar uma casa. Quando essas mudanças se fazem por iniciativa própria da vítima, esta fica entregue a si própria.

P - Referia o reforço da cooperação entre o Ministério Publico e a APAV mais no sentido da prevenção; em fase de inquéritos e de julgamentos a Associação tem uma intervenção directa em alguns casos que acompanha, constituir-se assistente dos processos por exemplo?
R -Podemos acompanhar as vítimas aos tribunais, mas não podemos constituir-nos assistentes no processo. Podemos ter intervenção no sentido de requerer ao magistrado do MP a adopção de algumas medidas de coacção. Imaginemos que foi apresentada uma queixa contra um individuo por violência doméstica que continua a ser perigoso, a vitima continua a viver com o agressor e ainda não foi decretada uma medida de coacção de afastamento do agressor, nós podemos fazer esse requerimento e assiná-lo. Podemos redigir queixas para a vítima assinar.

P - Podem ser testemunhas?
R - Podemos, mas o nosso depoimento vale pouco ou nada porque somos "testemunhas de ouvir dizer". Os testemunhos que valem são os de quem viu o crime a ser praticado.

P - A legislação poderia evoluir para que instituições como a APAV funcionar como defensor jurídico das vítimas reconhecido pelo estado?

R - O que está consagrado nos nossos estatutos é o aconselhamento, o encaminhamento, o apoio jurídico, mas não ao ponto de sermos advogados das vítimas. Como nós trabalhamos ao nível do voluntariado isso implicaria ter de aceitar imensos casos para patrocinar e não havia recursos humanos que dessem conta de tantas solicitações. Qualquer alteração teria de ter um enquadramento legal.

P - Quantas pessoas estão na APAV de Braga.

R - Umas nove pessoas. São todos voluntários. Eu pertenço aos quadros da associação. O gabinete da APAV funciona no segundo andar da Junta de Freguesia de S.Victor entre as 14 e as 18 horas,de segunda a sexta-feira

P - Em tempos lançava a ideia para a necessidade de o Gabinete da APAV em Braga ter instalações próprias mais reservadas.
R - Muitas vezes as pessoas têm vergonha de ir á APAV porque tem de entrar dentro da Junta que tem sido impecável connosco. Nós estamos numa sala que não é muito grande e que não tem privacidade. Muitas vezes as pessoas estão a falar connosco e os outros técnicos ouvem, não há como fugir a isso dada a exiguidade do espaço. É claro que estamos todos obrigados ao dever de sigilo e de confidencialidade, mas quem nos procura pode não se sentir á vontade.

P - No distrito de Braga e de acordo com o relatório de monitorização da violência doméstica elaborado pelo MAI, o primeiro semestre de 2016 comparado com o de 2015 houve também um aumento de queixas.
R - Não diferimos muito dos resultados nacionais. O distrito tem uma matriz muito especifica, muito religiosa, mas que não se reflecte nesta questão.

P- A queixa de violência domestica são mais do meio urbano?
R- Há muitas pessoas da cidade de Braga que vêm ter connosco, mas também dos arredores: Vila Verde, Guimarães, Barcelos, Póvoa de Lanhoso e ás vezes também de Viana do Castelo.

P - Sendo a violência doméstica um crime público e vocês tendo conhecimento de casos, apresentam queixa ás forças policiais ou tem de ser a vitima a fazer essa denuncia?
R - Quem está obrigado a fazer essa denuncia no exercício da sua função são os profissionais de saúde, os policias .outras pessoas que tomem conhecimento têm o dever moral de o fazer. Muitas vezes para não arranjarem problemas fazem denuncias anónimas para a policia ou para nós. Agora se a vitima de violência doméstica vier ter connosco nós não denunciamos a situação a não ser que exista perigo extremo. A pessoa diz-nos que não quer denunciar porque tem medo e nós também nunca faríamos a denuncia sem antes arranjar condições para ela se proteger. Existe da nossa parte um dever de confidencialidade e as pessoas confiaram em nós. Mas repito: se sentimos que estamos perante um caso extremo, denunciamos a situação.