11.9.17

Racistas são os outros

Afonso Camões, in Jornal de Notícias

Preto retinto, um amigo meu terá sido, há 30 anos, o primeiro negro que algum dia pisou o chão da minha terra, ali na raia, onde há quase mil anos se misturam sangues, sobretudo de árabes e marranos, a categoria que inventámos para os judeus convertidos. Donde é aquele "senhor moreno?"- perguntavam. É de Almada, português como nós.

Somos racistas? Nem pensar!, rumina o coro, numa de ressalvar o cadastro português e europeu em matéria de perseguições étnicas, raciais e religiosas e os milhões de vidas que tais cruzadas custaram. Sim, temos uma ministra e um deputado que são tão pretos como o Eusébio que eternizámos em bronze, ou como o Éder, o miúdo de Bissau cujo golo nos fez chorar de orgulho, além de um primeiro-ministro de ascendência goesa, um secretário de Estado cigano, muitas morenas e uns tantos loiros de olho azul.

Acontece que uma sondagem ainda recente vem surpreender. À pergunta "considera-se racista?", 16,4% dos inquiridos sob anonimato responde que "sim, sou racista". E é maior ainda a percentagem (26,1%) dos que declaram não aceitar que um filho ou uma filha namore com alguém negro. Quando perguntados se acham que os portugueses são racistas, a resposta "sim" atinge os 43,7%.

A realidade é sempre mais forte que os nossos preconceitos. Um trabalho do Centro de Pesquisas e Estudos de Sociologia revela que os afrodescendentes portugueses são duas vezes mais desempregados que os portugueses brancos, fracassam o dobro na escola, ganham salários 18% mais baixos e vão 10 vezes mais para a prisão. Sim, também podíamos falar dos ciganos...

A questão ganha acuidade quando 18 agentes da PSP estão acusados pelos crimes de tortura, discriminação racial, sequestro e injúria contra jovens de ascendência cabo-verdiana. E mais quando um dirigente da organização SOS Racismo vem acusar o Governo e a generalidade dos partidos com representação parlamentar de não apresentarem medidas eficazes que contrariem a segregação. Mais ainda quando um Comité das Nações Unidas exorta o Estado português a publicar estatísticas sobre minorias étnicas, para poder avaliar a forma "como os direitos económicos sociais e culturais vigentes se refletem nesses grupos". O próximo Censos está previsto para 2021. Até lá, enquanto o Tribunal Constitucional há de decidir se as nossas estatísticas podem incluir, ou não, a recolha de dados sobre a nossa origem étnica, o assunto permanece tabu, a conversa que evitamos. Racistas são sempre os outros. E, se pudermos, passamos adiante. Como se, ignorando a realidade e efabulando o nosso imaginário colonial, pudéssemos fugir à catarse da história.